Brasil, um torto arado de violência política

“Sofri atentado político ontem, com tiros disparados na madrugada, em frente de casa.” Estas são as palavras no último dia 27 da covereadora Carolina Iara, primeira pessoa intersexo eleita no país, pela Bancada Feminista do PSOL-SP. Antes, sua colega de partido, Erika Hilton – primeira vereadora trans em SP e a mulher mais votada da capital em 2020 – sofrera dois ataques graves em seu gabinete, fora outras dezenas de intimidações online.

A estes episódios devemos dar o nome que lhes cabe: violência política. Constituem um ataque à integridade da democracia, um regime que pressupõe o dissenso pacífico e não a política pela bala. Não há democracia sem o fim da violência política contra mulheres, e do racismo, sexismo e transfobia que a sustenta. Seja o racismo sofrido pela primeira prefeita eleita de Bauru, Suéllen Rosim (Patriota), sejam as ameaças de morte contra a deputada federal Taliria Petrone (PSOL), corpos de políticas, em especial negras e LGBTs, são alvos constantes de violência.

Brasil já vive números endêmicos de violência política. Só até o primeiro turno das eleições de 2020, ao menos 84 políticos foram assassinados no país, segundo dados do pesquisador Pablo Nunes (CESeC-RJ). Outro estudo entre 2016 e 2020, das ONGs Terra de Direitos e Justiça Global, contabilizou 327 casos de violência política, entre eles 125 assassinatos e atentados,.

Neste mar de sangue, corre-se o risco de ofuscar as violências políticas contra mulheres, e suas múltiplas camadas: virtual, institucional, moral, psicológica, física, sexual, racial, lgbtfóbica. Violência política de gênero não é um acidente, é um projeto político para manter o poder masculino, branco e cisgênero. Aos parlamentares homens cabe substituir as flores no dia 8 de março por respeito e equidade de poder.

Pesquisa recente lançada pelo Instituto Marielle Franco, com base em entrevistas com 142 candidatas negras das eleições de 2020, mostrou o caráter estrutural desta violência. 98,5% das candidatas negras disseram ter sofrido mais de uma violência política; entre aquelas que a reportaram, 70% indicaram que a denúncia não ajudou.

Para reverter este cenário, é necessário levar a sério denúncias dentro dos legislativos, trazer equidade de gênero para dentro comissões de ética, prover segurança policial e legislativa integral, fortalecer monitoramento do ódio online. Uma campanha online intitulada “Não Seremos Interrompidas” foi lançada neste domingo (31), exigindo proteção a parlamentares negras e trans. Há 1.055 dias Marielle Franco foi morta. Por quem e por quê?

“O sangue do passado corre feito um rio”, escreveu Itamar Vieira Junior no estupendo livro “Torto Arado”, vencedor do Jabuti de 2020. Terminei o livro no último domingo, mas confesso que o livro não terminou em mim: deixou um gosto agridoce de beleza e de dor que há muito não sentia. Livro conta a história de duas irmãs Bibiana e Belonísia no sertão baiano. Filhas de trabalhadores rurais e descendentes de escravos, a história segue com um punhado de lirismo, violência e sofrimento.

Fiquei abismado com a potência do título. Arado é um instrumento rústico usado para lavrar a terra. A palavra denota, assim, labor, suor. O título remete a um ritmo específico de tempo: ao tempo próprio do labor na terra. O Brasil de 2021 é um torto arado: a laborar e caminhar estamos, mesmo que tortuosamente. Violência política recai sobre mulheres negras e lgbts porque é por meio delas que o futuro é plantado; é responsabilidade de todos que têm apreço por este futuro que não se calem diante desta violência.

É em momentos como o atual que precisamos parar e escutar do que é feita a terra sobre a qual pisamos. Escreve Itamar: “Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração”. Se colocarmos nosso ouvido na terra, escutaremos, a pulsar, o som do amanhã que estas mulheres negras e trans tecem hoje.

Thiago Amparo
Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

Fonte: Folha de São paulo, por Thiago Amparo

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