As unhas vermelhas de Mabel…

Mabel foi uma das minhas babás. Melhor dizendo, quando trabalhou aqui em casa, eu não precisava mais de uma “babá”, mas parte do trabalho era ver se eu não incendiaria as cortinas e se tinha comido direito. Mabel era alta, estava sempre de cabelo preso e unhas bem feitas, pintadas de vermelho. Ela chamava bastante atenção e era muito engraçada, mas se movia sempre com muita elegância, até mesmo quando minha mãe a chamava por outro nome. Um nome de homem.

Por FABRICIO LONGO, do Os Entendidos

Lembro de quando perguntei à Mabel sobre aquele nome, sobre quem era aquele homem. Ela riu e disse que tinha coisas que não eram assunto de criança, mas acabou cedendo à minha insistência de moleque chato e mimado, mostrando-me uma carteira de identidade gasta, com a plastificação amarelada e uma foto em preto e branco. Eu ri, sem saber que isso poderia ser cruel, enquanto olhava para aquele rapaz esquisito e reconhecia os olhos de Mabel.

Guardo aquele nome até hoje. Tantas vezes  repeti aquele nome em voz alta, só para infernizar a Mabel, que o decorei para sempre. Um nome comum, mas que jamais repetirei. Depois de tanto gritá-lo, acho que a única forma de demonstrar meu arrependimento e de respeitar a memória dessa mulher é omitir esse nome que não lhe pertencia. Pelo mesmo motivo, não pude ilustrar esse post com uma foto dela, já que a única que minha mãe diz possuir é muito antiga, anterior ao “verdadeiro nascimento” de Mabel.

Minha mãe conheceu Mabel quando criança. Um rapaz franzino e afeminado, que cozinhava e bordava muito bem. Veio do interior do Ceará para morar com a irmã mais velha, Nair, que alugava um quarto na casa onde minha mãe morava, transformada em pensão pela tia que a criou. Uma casa bastante singular, no Centro da então capital federal, o Rio de Janeiro, que abrigava filhas virgens sob o mesmo teto que prostitutas – como era o caso de Nair – , bailarinas e vedetes, enquanto o primeiro andar era usado pelos homens como bar e cassino, com o jogo do bicho e o carteado fazendo fortunas, dívidas, amizades e desafetos. Isso no final dos anos 1950…

Foi nos anos 1970, quando minha mãe já era uma mulher adulta, que “aquele rapaz” ressurgiu como Mabel, com uma história tão comum a tantas travestis: prostituição, um amor europeu, cirurgias plásticas, exploração, a volta para casa completamente transformada. Agora Mabel tinha sua própria casa e ninguém em minha família se preocupava em julgar suas atividades. A pensão não existia mais porque o negócio do jogo prosperou e com os filhos abrindo suas asas o núcleo familiar foi diminuindo. Mabel era uma amiga, uma lembrança de um passado mais simples, até porque nunca mais se ouviu falar de sua irmã.

Já nos anos 1990, com a idade se fazendo notar, Mabel veio trabalhar em minha casa por um tempinho. Eu nunca soube que tipo de conversas ela e minha mãe poderiam ter sobre mim, mas sei que ela foi demitida para “não me influenciar”, já que nessa altura a minha homossexualidade era um fantasma assombrando toda minha família. Fiquei triste porque a adorava, e também com o sentimento de culpa que estava sendo ensinado a associar com tudo que dissesse respeito à minha sexualidade, ao meu “desvio”.

Quando ouvi falar de novo de Mabel, ela tinha morrido. Minha mãe se lamentava por não ter sido mais generosa. Em sua tristeza, insistia no fato de que Mabel tinha sido enterrada usando apenas uma mortalha simples em um caixão básico e numa cova rasa, já que estava praticamente na miséria. Ela, tão vaidosa e sempre tão arrumada, tinha sido mais uma vítima da epidemia de AIDS a morrer extremamente magra em um hospital público, o que talvez só tenha chegado aos meus ouvidos como um aviso aterrorizante do destino que certo tipo de futuro reservaria para mim.

De alguma forma, minha mãe tinha razão. De alguma forma, Mabel me influenciou profundamente, não em me transformar no que eu já era, mas em abrir o meu olhar. Só agora, 20 anos mais tarde, depois de estudar muito e de entrar na militância, é que consigo compreender sua trajetória de vida e localizá-la histórica e socialmente dentro da rede de exclusões que moldaram seu caminho. Só agora consigo enxergar a minha “babá travesti” através da maquiagem de glamour que sua imagem impecável e fascinante gravou em minha memória. Só agora vejo as diferenças entre mim e ela, e penso no quanto essa amiga maravilhosa me ajudou a olhar para esse “outro lado” marginal que minha homossexualidade até tangencia, mas que não vive porque a cisgeneridade e o masculino me protegem.  Só agora consigo entender porque aquelas unhas vermelhas estavam sempre fabulosas, mesmo durante a faxina pesada, como símbolos de uma feminilidade que brigou para se fazer possível.

Obrigado, Mabel.

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