At Last

O imaginário racista que povoa as representações sobre o negro comumente propõem imagens estigmatizadoras das famílias negras. Em geral essas representações reiteram a visão de anomia das famílias negras. Ou, como no caso do Brasil soma-se a essa representação, a valorização, quase como uma forma de imposição, da imagem de casais que se prestam a referendar a ideologia da miscigenação como paradigma privilegiado das relações raciais exaustivamente utilizados por nosso mito de democracia racial. Esses clichês não deixam espaço para a visibilidade desses modelos de famílias negras que a era Obama traz à luz.

Especialistas norte-americanos das áreas de propaganda e marketing comentam sobre a mudança de paradigma que foi estabelecida com a ascensão de uma família negra à condição de first family e o impacto dessa novidade sobre os parâmetros consagrados de representação familiar; essa inflexão impõe mudanças nos critérios estabelecidos segundo os quais, o modelo de família seria sempre e somente a família branca. Diante da nova realidade percebem que, ainda que seja apenas, a bem dos negócios, “tem que mudar os seus conceitos” e, sobretudo os seus produtos.

Ele diz que ela é a rocha da família. Ela não desmente, ao contrário, afirma que sua prioridade é ser primeira-mãe ou mãe-em-chefe e que não é assessora ou conselheira política do presidente eleito e sim, sua esposa. E, enquanto tal, e dado o seu temperamento, segundo dizem, não hesitaria em fazê-lo lavar a louça após o jantar familiar, mesmo na Casa Branca.

Há anos atrás escrevi os arquétipos que povoam a nossa tradição religiosa são prenhes de femininos que não se limitam aos arquétipos de outros sistemas de crenças nos quais as mulheres são categorizadas entre as santas e as nem tanto das quais a Virgem Maria e Maria Madalena se tornaram os grandes estereótipos. Nas religiões de matrizes africanas, as deusas atravessam esses estreitos limites instituídos para o feminino. Elas são portadoras de características complexas, carregam ambigüidades que lhes permitem transitar entre a feminilidade e a virilidade sem deixarem de serem, ao mesmo tempo, mães dedicadas e amantes apaixonadas. E as mulheres que as inspiraram assim o são, porque creio que inventamos os nossos deuses e deusas, à nossa imagem e semelhança.

Os processos históricos acentuaram essa propensão: mulheres negras escravizadas à mercê de colonizadores que destituíram seus homens da condição de provedores e protetores tiveram que contar com elas mesmas e inventar formas de sobrevivência para si, suas famílias e, muitas vezes, também para seus homens. Fizeram de tudo nas casas grandes, nas senzalas e nas ruas e graças a elas aqui estamos.

Michelle Obama é herdeira dessa experiência histórica como o são todas as mulheres negras que perseveram mundo afora. Mas, como as deusas negras, Michelle Obama não deixa também de expressar o outro lado da rocha, que se revela a cada toque de seu companheiro que, com gestos sutis, porém carregados de sedução faz emergir sua face apaixonada na qual se misturam encantamento e embaraço com a demonstração pública de afeto e admiração do parceiro.

Assim, ao som de At Last, interpretado por uma Byonce visivelmente emocionada, pelo momento mágico que tinha o privilégio de assistir tão de perto, o primeiro-casal exibiu publicamente amor, romantismo, sensualidade, traços de humanidade que os rígidos protocolos recomendam suprimir dessas ocasiões. Há décadas atrás o MNU realizou uma campanha que tinha por slogan “Beije sua preta em praça pública.” Uma palavra de ordem plenamente realizada por Barack Obama, aquele que tem a “pegada” capaz de derreter uma “rocha”.

 

+ sobre o tema

12/05 – Sueli Carneiro e Cuti autografam seus livros na Livraria Martins Fontes

A Selo Negro Edições e a Livraria Martins Fontes...

Epistemicídio

Muitas são as razões que advêm de uma realidade...

Miscigenação – Sueli Carneiro

A miscigenação racial presente em nossa sociedade vem se...

Pobreza tem cor no Brasil, por Sueli Carneiro

Pobreza tem cor no Brasil. E, existem dois Brasis. Por...

para lembrar

Dre Sueli Carneiro : “Le racisme produit une fausse conscience de supériorité “

La société brésilienne doit abandonner l'hypocrisie, assumer qu'elle est exrêmement...

Colorindo Egos, por Sueli Carneiro

Nesta semana ocorreu em São Paulo o I Congresso...

Falta o Congresso

Registramos em nosso último artigo nessa coluna que embora...

Raça, classe e eleições, por Sueli Carneiro

Análises das pesquisas de intenção de votos nos candidatos...
spot_imgspot_img

O precário e o próspero nas políticas sociais que alcançam a população negra

Começo a escrever enquanto espero o início do quarto e último painel da terceira sessão do Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes, nesta semana na...

Fórum da ONU em Genebra discute desenvolvimento econômico dos negros

No terceiro dia do 3º Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes, promovido pela ONU, em Genebra, a ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, destacou a importância...

Instituto Geledés promove evento sobre empoderamento econômico para população negra

O Geledés – Instituto da Mulher Negra realizou nesta quarta-feira (17) evento paralelo ao Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes que acontece na sede das Nações...
-+=