Audiência Pública Denise Carreira

Senhora Denise Carreira, Relatora Nacional para o Direito Humano à Educação, que aqui representa a Ação Educativa.

AUDIÊNCIA PÚBLICA ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 186 RECURSO EXTRAORDINÁRIO 597.285 A SENHORA DENISE CARREIRA (RELATORA NACIONAL PARA O DIREITO HUMANO À EDUCAÇÃO) –

Bom-dia, Senhores Ministros; bom-dia a todos e a todas presentes.

Agradeço a oportunidade e parabenizo o STF pela iniciativa da Audiência Pública sobre tema tão estratégico para a democracia brasileira.

Minha fala vai abordar os dados e os resultados preliminares da Missão de Investigação, Educação e Racismo no Brasil, em desenvolvimento pela RelatoriaNacional para o Direito Humano à Educação, vinculada à Plataforma DESC Brasil.

Assim como os relatores especiais da ONU, os relatores nacionais, eleitos para um mandato de dois anos, elaboram relatórios sobre violações de direitos humanos no Brasil, que são divulgados junto às autoridades e à sociedade civil nacional e de instâncias internacionais.

Os relatórios apresentam um conjunto de recomendações ao Estado brasileiro, visando o enfrentamento da situação de violação. Em especial, buscarei trazer elementos que permitam abordar a polêmica sobre se o caminho para enfrentar as desigualdades raciais no acesso ao ensino superior é a melhoria da escola pública ou o investimento no aprimoramento de programas de ação afirmativa.

A partir da base normativa internacional, presente em convenções, tratados e declarações dos quais o Brasil é signatário, e da legislação brasileira, e sintonizada com o entendimento que o STF fixou, por meio do julgamento do Caso Elvanger, assumimos aqui que a categoria “raça” é uma construção social que nos permite compreender determinados processos de exclusão, discriminação, dominação e produção de desigualdades entre grupos humanos, baseadas em características físicas e identidades étnicoculturais, e que formas contemporâneas de discriminação que veiculam imagens depreciativas de determinados grupos contribuem para as desigualdades de oportunidades no acesso a bens, poder, conhecimentos e  serviços na sociedade. Esses processos são entendidos como constitutivos do chamado “racismo”.

No Brasil, podemos dizer que as políticas universais de educação, da educação infantil ao ensino superior, têm sido insuficientes para enfrentar as
desigualdades raciais que marcam historicamente a educação brasileira, tanto no que se refere ao acesso quanto à permanência e à aprendizagem.
Tal situação é amplamente constatada por meio de informações e análises de diferentes fontes, das governamentais, das agências da ONU, de  institutos acadêmicos e organizações da sociedade civil, que apontam que, apesar da melhoria de vários indicadores educacionais, a desigualdade entre pessoas negras e brancas se mantém nas últimas décadas.

Destacamos aqui alguns dados.

Das 680 mil crianças de 7 a 14 anos fora da escola, 450 mil são negras. O analfabetismo entre jovens negros de 15 a 29 anos é quase duas vezes maior do que entre brancos. Das crianças que entram no ensino fundamental, 70% das crianças brancas conseguem concluí-lo, e somente 30% das crianças negras chegam ao final da etapa.

A freqüência líquida no ensino médio é de 49,2% maior entre os jovens brancos do que entre os negros. A diferença de dois anos de estudo entre
brancos e negros mantém-se praticamente inalterada desde o  início do século XX. No ensino superior, em 1976, 5% da população branca tinha um diploma de educação superior, aos 30 anos, enquanto somente 0.7% da população negra na mesma idade havia concluído o ensino superior. Em 2006, 18% dos brancos com 30 anos tinham concluído o ensino superior, enquanto somente 4.3% dos negros.

O hiato racial entre negros e brancos, que era de 4.3 pontos em 1976, quase que triplicou para 13 pontos em 30 anos. Para além das estatísticas nacionais, esta relatoria pôde comprovar que no cotidiano das creches, escolas e universidades o racismo está ali presente, muitas vezes silenciado e invisibilizado pelo discurso da democracia racial. Ele se concretiza por meio, não só de atitudes ativas, como agressões, humilhações, apelidos e violências físicas, mas de forma mais sutil por meio da falta de reconhecimento de estímulo, da negação de uma história e de identidades, da  desatenção, da distribuição desigual de afeto e da baixa expectativa positiva com relação ao desempenho de crianças, jovens e adultos negros.

Como diversas pesquisam apontam, essas situações têm um impacto terrível na aprendizagem e no desenvolvimento da auto-estima de pessoas negras, identificada de forma explícita na situação dos indicadores referentes aos meninos e jovens negros no ensino fundamental e médio; tem um impacto terrível na manutenção de culturas discriminatórias no ambiente escolar.

Em 2009, uma pesquisa nacional divulgada pela FIPE, da Universidade de São Paulo, e pelo INEP, chamou a atenção para a realidade do chamado bullying, em nível internacional o termo bullying vem sendo utilizado para descrever o fenômeno da violência cotidiana ocorrida no ambiente escolar e caracterizada por agressões e humilhações físicas, psicológicas, simbólicas e sexuais, constantes contra aqueles e aquelas considerados diferentes, em decorrências de características físicas e/ou identidades de gênero, raça/etnia, orientação sexual, origem regional e sócio-econômica, deficiências, identidades religiosas, entre outras.

Segundo a pesquisa nacional, as crianças e jovens negros estão entre aqueles e aquelas que mais enfrentam o problema no Brasil, o chamado  “bullying racista”. Em decorrência de todo esse quadro e da dimensão do problema caracterizado por desigualdades e discriminações raciais da  educação básica à educação superior, entendemos que o Estado brasileiro, em busca de justiça social, deve avançar com relação ao enfrentamento do racismo como questão estruturante da educação brasileira, reconhecendo a necessidade de que ela adquira um lugar de maior centralidade nos  desenhos das políticas públicas comprometidas com a qualidade educacional, com os processos de aprendizagem e com a melhoria do  desempenho escolar na educação básica, mas é muito importante reconhecer que vários passos fundamentais foram dados na última década e que outros muitos precisam ocorrer.

Nesse sentido, a concretização do Plano Nacional de Implementação da Lei nº 10.639, lançada em 2009, constitui  ponto estratégico dessa agenda. Nesse contexto, é importante ressaltar que não se trata de esperar a melhoria da qualidade da escola pública para se alcançar a maior democratização do acesso ao ensino superior para populações negras, indígenas e pobres, entre outras. É necessário conjugar no tempo estratégias, ações e políticas que agilizem o processo histórico rumo a uma maior igualdade na educação brasileira e a superação de um modelo educacional ainda predominantemente eurocêntrico.

Não podemos esperar 67 anos, como previsto em vários estudos, para que os indicadores educacionais de brancos e negros se encontrem. Esse  tempo sacrificaria mais três gerações, além de dezenas que, ao longo da história brasileira, foram penalizadas pelo racismo. É também  fundamental reconhecer que nenhuma política universal é igualmente para todos ou neutra quando falamos em desigualdades, argumento utilizado para questionar as ações afirmativas.

Toda política universal, de uma forma ou de outra, contribui para a manutenção, o acirramento, ou a transformação das desigualdades entre grupos humanos, e muitas geram até verdadeiras violências institucionais justificadas por princípios ditos universais.

Entendemos que a experiência das ações afirmativas em mais de 80 universidades brasileiras constitui experiência criativa e inovadora, tanto no plano nacional como no internacional, sintonizada com os desafios e as especificidades da realidade do país e com os documentos internacionais dos quais o país é signatário, que prevêem a criação de mecanismos que acelerem a correção das desigualdades étnicas e raciais, entre eles a Convenção contra a discriminação no ensino, a Declaração e o Programa de Ação de Durban e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial adotada pela ONU em 65 e ratificada pelo Brasil em 1968.

A experiência das ações afirmativas não constitui modismo ou a imposição de um modelo fechado dos Estados Unidos, da Índia ou de qualquer  país. Afirmar isso é negar que o país já tem uma história de ações afirmativas desde a década de 1930 e é desqualificar e subestimar a capacidade brasileira, presentes em universidades, governos e sociedade civil, de construir alternativas que enfrentem nossos problemas estruturais. É negar também que as ações afirmativas estão trazendo para as universidades públicas sujeitos, realidades, trajetórias, perspectivas, desafios, competências e talentos até então quase invisíveis no universo acadêmico. Essa maior diversidade étnico-racial tem levado a um crescimento e diversificação dos temas de pesquisa, fazendo com que a universidade pública brasileira, historicamente branca e de classes média e alta, dialogue mais com a realidade do país e passe a ter uma face mais próxima daquela que constitui a maioria da população brasileira. População que com o seu trabalho garante as condições de sustentação dessas mesmas universidades.

Esta relatoria nacional vai recomendar, em seu relatório a ser divulgado nacional e internacionalmente, a necessidade de garantir condições para o amadurecimento da experiência das ações afirmativas nas universidades brasileiras, aprendendo com os desafios e problemas e aprimorando  procedimentos e critérios ao longo do tempo, que tais ações se fizerem necessárias para corrigir desigualdades. Nesse sentido é fundamental a
aprovação do PL nº 180, que se encontra parado no Senado Federal.

Entendemos que o que está em jogo no julgamento, no STF, não são as ações afirmativas em si, já que o país utiliza esses instrumentos para corrigir desigualdades há décadas, mas o critério racial como base para definição de ações afirmativas. Os dados anteriormente apresentados, nesta e em outras falas, escancaram que o argumento da pobreza é insuficiente para explicar todas as nossas desigualdades e que o país não  pode mais perder tempo para enfrentar aquele que é um dos grandes desafios tão, mais tão negado da democracia brasileiro.

Com esse julgamento, o STF, sintonizado com o princípio maior da nossa Constituição de promover a justiça social, pode contribuir decisivamente  para o aprimoramento e consolidação de instrumentos, mecanismos e políticas públicas inovadoras que respondam à gigantesca dívida social e fortaleçam uma sociedade democrática comprometida efetivamente com a garantia do direito humano à educação de todos e todas.

Obrigada!

Fonte: STF

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