Bebedouros de frescor

fernanda pompeu

Deve ser inevitável que toda aventura, empreitada, trilha, empresa, época, anoiteça. Afinal, irremediavelmente e por todos os dias do mundo, o sol se põe. Sem falar que haverá a hora da nossa morte, amém!

Meus olhos, que completaram cinquenta e sete anos de janela, observaram alguns padrões de entusiasmo, consolidação e, não querendo aguar a festa, de declínio. Também notaram que a institucionalização ergue muros onde antes havia terrenos baldios.

Faz mais de trinta anos participei de um grupo feminista deveras especial. Se chamava SOS Mulher e tinha como missão combater a violência doméstica sofrida pelas mulheres. Éramos um bando de gente jovem, destemida, esfomeada de vida.

formalidade do SOS era próxima de zero. Não era ONG, não era governo, não era uma política pública. Era tão somente um grupo de pessoas com o sonho de eliminar olhos roxos, dentes quebrados, almas partidas das vítimas de maridos e namorados violentos.

Depois vieram as delegacias especializadas de mulheres, as secretarias, os conselhos. Num certo sentido, o Estado encampou a luta contra a violência de gênero. Vide a lei Maria da Penha. É claro que tudo isso é muito bom e absolutamente necessário.

Mas – defeito colateral – a institucionalização dos assuntos das mulheres fechou as portas para grupos feministas mais libertários e inovadores. Hoje, todo e qualquer projeto de ação passa necessariamente por sistemas de controle e escaninhos burocráticos.

Outra experiência similar vivi no Senac São Paulo. Na década de 1990, participei das primeiras turmas de cursos de vídeo. Eles eram chamados de “cursos livres”, e nós docentes tínhamos carta branca para propor metodologias.

Lembro que um curso não era igual ao outro. Inventávamos sem parar. Usávamos e abusávamos da intuição. Ensinávamos de “ouvido”. Pois no fundo erámos também aprendizes. Funcionou! Havia entusiasmo! Um parâmetro difícil de constar em relatórios.

Poucos anos depois, baixou o braço forte. Os cursos foram formatados e formalizados. Perderam a liberdade. Entrou a política de “diplomar”. E óbvio chegou o MEC com suas regras e seu controle. De novo, nada disso é ruim. Mas aqueles corredores e salas explodindo em ideias desapareceram.

Será que é sempre assim? Boas iniciativas levam à institucionalização? Esta leva a um engessamento? Ou será que tudo isso é bobagem de meus olhos pré-sessentões? Alguém aí me empresta um colírio?

fernanda pompeu, webcronista do Yahoo e do Nota de Rodapé, escreve às quintas. Ilustração de Fernando Carvall, especial para o texto.

 

 

Fonte: Nota de Rodapé

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