Quebranto, cobreiro, aguamento, ventre-virado são males vinculados à ação de cura das benzedeiras e dos benzedores. Suas orações ingressam em um universo simbólico de práticas curativas que fazem parte das crenças populares e penetram a memória coletiva.
Uma tradição cuja origem se perde no tempo, a benzedura se mantém em uma trilha que ecoa através das gerações. A tradição oral apresentada nos benzimentos tem como base difusora as redes familiares e de convivência. A partir delas os conhecimentos são transmitidos de forma direta ou indireta para a geração seguinte, o que garante de certa forma uma herança simbólica. De acordo com Myriam Lins de Barros, a transmissão de valores e bens simbólicos para os descendentes confere à família o lugar de passagem e evidencia a noção de tempo cíclico. Sendo a família o lugar em que os processos cíclicos identitários são elaborados, a oralidade tem um papel essencial na transmissão desses valores e conhecimentos, pois corresponde ao caminho pelo qual os benzedores ingressam por esse ofício de cura.
A tradição oral empregada na prática de benzedura representa um vínculo afetivo com a pessoa que ensinou aos benzedores o ofício da cura. Representa o vínculo com o passado, com os costumes, mas também com sua identidade. A forma de transmitir a prática da benzedura reflete na relação que os benzedores têm com o passado, com seus instrutores e com sua forma de ser e vivenciar a prática da benzedura.
Além das orações repassadas, os benzedores carregam consigo devoções e religiosidades que se manifestam a partir das vivências e visões de mundo desses sujeitos. Joël Candau mostra que “transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma identidade não consiste, portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar no mundo”. A forma como cada benzedeira ou benzedor manifesta seu exercício de fé e cura no presente representa o modo como se conecta com seu passado.
A partir das trajetórias dos benzedores, no qual incluo também a trajetória de minha avó, Ana de Jesus Rodrigues, proponho uma investigação sobre as práticas religiosas e o processo de formação de suas identidades através de suas memórias. O estudo é realizado na cidade de São João del-Rei, em Minas Gerais. Através da História Oral estabelecemos um vínculo de construção de memórias por meio da relação do passado e do presente. Ao lidar com memórias individuais, constituímos um terreno rico para trabalhar a subjetividade, as vivências e emoções desses sujeitos.
As enfermidades vinculadas à prática da benzedura adquirem um sentido próprio que estabelece uma ligação entre o benzedor e o consulente, que busca uma resolução dos males que o afligem. Para Alberto Manuel Quintana, a ligação da doença com o social se verifica pela busca de uma explicação para a doença que consiga dar conta dos componentes biológicos e, principalmente, dos elementos socioculturais.
A doença não pode ser vista como um processo isolado do seu contexto social. Há sempre uma necessidade de conhecer a causa do mal, e fundamentalmente, as circunstâncias que possibilitaram sua existência. O corpo não é percebido apenas na sua dimensão biológica; ele possui uma dimensão simbólica, pois o corpo é uma construção social. Dessa forma, as doenças que afligem o corpo, assim como as práticas de cura destinadas a combatê-las, também apresentam caráter social.
As enfermidades vinculadas à prática de benzedura adquirem um sentido próprio entre os benzedores e os consulentes. Se não há esse compartilhamento de crenças, de sentido, de fé, não há como promover a cura.
De acordo com Alberto Manuel Quintana, o processo ritual da prática de benzedura é formado basicamente em três momentos. O primeiro seria o diálogo; o processo inicia com a chegada do consulente que solicita a intervenção do benzedor. O segundo, seria a bênção; é a benzedura propriamente dita. Esse momento costuma ser acompanhado com orações católicas como Pai-Nosso, Ave-Maria, Credo e Salve Rainha. E, o último momento, a prescrição, que são condutas de como os consulentes devem agir depois da benzedura para que o tratamento surta efeito. Alguns benzedores, por exemplo, recomendam que o benzimento seja realizado durante três dias consecutivos, ou indicam tomar um banho de alguma erva medicinal para reforçar o processo de cura.
Durante a benzeção, alguns recursos e instrumentos são utilizados para auxiliar no processo de cura. A voz, por exemplo, exerce um papel fundamental nos benzimentos, pois aciona os comandos nas orações para que o mal saia do corpo do consulente. O terço é um objeto muito utilizado nas benzeções, assim como o talo da mamona nos benzimentos para cobreiro. Ervas como alecrim e arruda costumam ser usadas nas benzeções de quebranto e mau-olhado. A agulha, linha e um pedaço de pano são utilizados nas orações de jeito e de coser.
Alguns desses objetos servem como metáfora do corpo intermediário, como sugerem Edimilson Pereira e Núbia Gomes. Para a extinção do mal e o restabelecimento do equilíbrio, as benzeções necessitam de um corpo intermediário, para o qual a doença e o sofrimento possam ser transferidos e anulados.
A figura dos benzedores está vinculada ao imaginário popular, suas orações e rituais permeiam um universo representativo criado por diversas influências culturais. A imagem formada de um benzedor fomenta uma identidade que os representa diante de sua comunidade. Através da prática, o benzedor representa uma figura intermediária que recebe o poder divino para aplicá-lo nas pessoas que o procuram a fim de se curar.
No repertório de rezas dos benzedores são recorrentes as orações de quebranto, cobreiro, ventre-virado, entre outras. Esse compartilhamento de orações é comum a esse grupo. A apropriação dessas rezas resulta na ressignificação das práticas de benzedura, ou seja, os benzedores, mesmo com o repertório de orações semelhantes, estabelecem novas leituras por meio de devoções particulares e religiosidades em sua prática de cura. Dessa forma, acreditamos que a prática da benzedura apresenta-se através da relação particular, da leitura que cada benzedor tem com o catolicismo, com outras religiões e crenças.
O ofício da benzedura desenvolvido por esses benzedores e benzedeiras carrega uma força ancestral que se perde no fio do tempo. Suas vozes ecoam saberes, expulsam o mal, promovem a cura, harmonizam o espírito. Fazer o bem é o que move suas trajetórias de vida.
Assista ao vídeo da historiadora Tayane Aparecida Rodrigues Oliveira no Cultne TV sobre este artigo:
Nossas Histórias na Sala de Aula
O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):
Ensino Fundamental: EF01HI01 (1º Ano: Identificar aspectos do seu crescimento por meio do registro das lembranças particulares ou de lembranças dos membros de sua família e/ou de sua comunidade). EF02HI02 (2º Ano: Identificar e descrever práticas e papéis sociais que as pessoas exercem em diferentes comunidades). EF02HI03 (2º Ano: Selecionar situações cotidianas que remetam à percepção de mudança, pertencimento e memória). EF05HI10 (5º Ano: Inventariar os patrimônios materiais e imateriais da humanidade e analisar mudanças e permanências desses patrimônios ao longo do tempo). EF06HI19 (6º Ano: Descrever e analisar os diferentes papéis sociais das mulheres no mundo antigo e nas sociedades medievais).
Ensino Médio: EM13CHS104 (Analisar objetos e vestígios da cultura material e imaterial de modo a identificar conhecimentos, valores, crenças e práticas que caracterizam a identidade e a diversidade cultural de diferentes sociedades inseridas no tempo e no espaço). EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais).
Ensino Religioso
Ensino Fundamental: EF01ER05 (1º Ano: Identificar e acolher sentimentos, lembranças, memórias e saberes de cada um). EF01ER06 (1º Ano: Identificar as diferentes formas pelas quais as pessoas manifestam sentimentos, ideias, memórias, gostos e crenças em diferentes espaços). EF03ER01 (3º Ano: Identificar e respeitar os diferentes espaços e territórios religiosos de diferentes tradições e movimentos religiosos). EF03ER03 (3º Ano: Identificar e respeitar práticas celebrativas (cerimônias, orações, festividades, peregrinações, entre outras) de diferentes tradições religiosas). EF04ER04 (4º Ano: Identificar as diversas formas de expressão da espiritualidade (orações, cultos, gestos, cantos, dança, meditação) nas diferentes tradições religiosas). EF05ER04 (5º Ano: Reconhecer a importância da tradição oral para preservar memórias e acontecimentos religiosos. EF05ER05 (5º Ano: Identificar elementos da tradição oral nas culturas e religiosidades indígenas, afro-brasileiras, ciganas, entre outras). EF05ER06 (5º Ano: Identificar o papel dos sábios e anciãos na comunicação e preservação da tradição oral). EF05ER07 (5º Ano: Reconhecer, em textos orais, ensinamentos relacionados a modos de ser e viver). EF08ER02 (8º Ano: Analisar filosofias de vida, manifestações e tradições religiosas destacando seus princípios éticos).
Tayane Aparecida Rodrigues Oliveira
Historiadora, Mestranda pela Universidade Federal de São João del-Rei (PGHIS-UFSJ); integrante do Grupo Emancipações e Pós-Abolição em Minas Gerais; e-mail:[email protected]; Instagram: @tay_aro
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