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Por dentro da África
Pesquisa: A BÍBLIA COMO LITERATURA AFRICANA: O Discurso Religioso no Olhar da Igualdade Racial
Autor: André da Silva Barros
O presente artigo pauta-se na Bíblia Sagrada como sendo um livro da literatura africana, uma vez compreendida a noção de que Moisés, cuja história representa a sétima parte da Bíblia, autor dos cinco primeiros livros das Escrituras, nascera e se criara em território africano. Sua formação ocorrera nos palácios do Egito, sendo que muito do que é percebido em seu Pentateuco pode ser encontrado na literatura secular da época.
A reflexão será feita a partir de informações de autores que estudaram a relação entre a Bíblia (como a Comissão Católica Internacional, o biógrafo São Jerônimo, o enciclopedista Orlando Boyer, o pastor Martin Luther King Junior, o deputado Marco Feliciano e o papa João Paulo II), os estudos culturais (Antônio Sérgio Alfredo Guimarães e Stuart Hall), a arte (Manuel de Ataíde), envolvendo o negro (Marcos Rodrigues da Silva) e a egiptologia (faraó Akhenaton, Albert Adu Boahen e Alain Quesnel), além da legislação que incentiva o estudo da Cultura Africana e das relações étnico-raciais nas escolas públicas.
1. Fundamentos do discurso religioso na formação da identidade do ser humano Ver-se-á o mapeamento de personagens e contatos africanos no Antigo e no Novo Testamento, dos papas e bispos africanos do início da Igreja e suas contribuições e a relação entre artistas afrodescendentes brasileiros que usaram como tema os trechos bíblicos.
“Contudo, devo também dizer, há certas relações muito estreitas entre a diáspora negra e a diáspora judaica — por exemplo, a experiência de sofrimento e exilio, e a cultura do livramento e da redenção que resultam daí. Isto explica porque o rastafarismo usa a Bíblia, o reggae usa a Bíblia, pois ela conta a história de um povo no exilio dominado por um poder estrangeiro, distante de “casa” e do poder simbólico do mito redentor. Portanto, toda a narrativa da colônia, da escravidão e da colonização esta reinscrita na narrativa judaica. E no período da pós–emancipação, muitos escritores afro-americanos exploraram fortemente a experiência judaica como metáfora. Para as igrejas negras nos Estados Unidos, a fuga da escravidão e o livramento do “Egito” eram metáforas paralelas.” (HALL, 2003, p. 417)
O que se entende por igualdade racial? Será que socialmente existe uma raça humana que seja diferente da outra a partir do critério da cultura, do povo, da nação de cada pessoa ou grupo, ou existe como visto pela Biologia apenas uma espécie? Guimarães (2013, p. 95) responde que há esta diferença, o que depende do sentido analítico que se quer atribuir ao conceito. Para ele:
“[…] as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica. Podemos dizer que as “raças” são efeitos de discursos; fazem parte desses discursos sobre origem (Wade 1997).
As sociedades humanas constroem discursos sobre suas origens e sobre a transmissão de essências entre gerações. Esse é o terreno próprio às identidades sociais e o seu estudo trata desses discursos sobre origem. Usando essa ideia, podemos dizer o seguinte: certos discursos falam de essências que são basicamente traços fisionômicos e qualidades morais e intelectuais; só nesse campo a ideia de raça faz sentido. O que são raças para a sociologia, portanto? São discursos sobre as origens de um grupo, que usam termos que remetem à transmissão de traços fisionômicos, qualidades morais, intelectuais, psicológicas, etc., pelo sangue (conceito fundamental para entender raças e certas essências).” (GUIMARÃES, 2013, p. 96) [grifo nosso]
O que faz alguém entender que os “traços fisionômicos, as qualidades morais, intelectuais, psicológicas, o sangue”, a cor de pele, a língua, o pensamento são capazes de distinguir uma espécie a ponto de se pensar pertencente a esta ou aquela raça? Como é possível, em sociedade, conhecer e respeitar o próximo, independente de sua condição ou opção sexual, racial, religiosa, cultural?
A Constituição Brasileira diz no artigo quinto que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (BRASIL, 2013a, p. 5), bem como o Catecismo Católico:
“1935. A igualdade entre os homens diz respeito essencialmente à sua dignidade pessoal e aos direitos que daí decorrem.
Qualquer forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja (essa discriminação) social ou cultural, ou que se fundamente no sexo, na raça, na cor, na condição social, na língua ou na religião deve ser superada e eliminada, porque contrária ao plano de Deus.” (COMISSÃO CATÓLICA INTERNACIONAL, 2000a, p. 512)
Boyer (2013, p. 638) diz que RAÇA é“espécie, variedade, casta, classe” (De um só fez toda rhumana, At 17.26. Sois r eleita, 1 Pe 2.9). Versículos reforçam a noção de igualdade entre os homens e que condenam a acepção de pessoas, o preconceito e a consequente discriminação, inclusive atos de racismo são:
“E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” (Gênesis 1:27)
“Na verdade reconheço que Deus não faz acepção de pessoas.” (Atos dos Apóstolos 10:34)
“Pois para com Deus não há acepção de pessoas.” (Romanos 2:11).
“Todos os homens pecaram.” (Romanos 3.23),
“Por isso em Cristo não deve existir nem judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.” (Gálatas 3.28).
“Mas se fazeis acepção de pessoas, cometeis pecado, sendo por isso condenados pela lei como transgressores.” (Tiago 2:9)
Mas, e quando existe por detrás da formação da sociedade uma ideologia calcada no preconceito, no racismo, na desigualdade, sem respeitar os traços sociais, culturais, sexuais, de raça, de cor, de condição social, linguísticas, religiosas, como fazendo parte da identidade da pessoa? Hall diz que:
“A manutenção de identidades racializadas, étnico-culturais e religiosas, é obviamente relevante a autocompreensão dessas comunidades. O fator da “negritude” é decisivo para a identidade da terceira geração de afro-caribenhos, assim como e a fé hindu ou muçulmana para a segunda geração de certos asiáticos. Mas certamente essas comunidades não estão emparedadas em uma Tradição imutável. Assim como ocorre na maioria das diásporas, as tradições variam de acordo com a pessoa, ou mesmo dentro de uma mesma pessoa, e constantemente são revisadas e transformadas em resposta as experiências migratórias. Ha notável variação, tanto em termos de compromisso quanto de prática, entre as diferentes comunidades ou no interior das mesmas – entre as distintas nacionalidades e grupos linguísticos, no seio dos credos religiosos, entre homens e mulheres ou gerações.” (HALL, 2003, p. 66)
Hall parece propor aqui um estudo cultural sobre identidade e ainda sobre religião. Para ele, existem, dentro da identidade do homem negro, divisões a partir do fenômeno religioso, tais como o negro católico, o negro protestante e o negro rastafári ou afro-caribenho e por que não dizer além “do católico, o negro do sincretismo, das matrizes africanas e os islâmicos” (Silva, 1987, p. 18, 19)? Isso chama a atenção para o poder que o discurso religioso possui sobre a formação da pessoa, sendo este um fator cultural determinante.
Hall (2003, passim), levando em consideração esta questão, cita trinta e nove vezes a palavra “religião”, tendo como conceito um elemento da formação cultural inerente a todo ser humano, assim como a questão étnica e linguística. Segundo ele:
“Na Jamaica, por exemplo, seus traços ainda podem ser encontrados em milhares de locais não investigados — nas congregações religiosas de todos os tipos, formais e irregulares; nas vozes marginalizadas dos pregadores e profetas populares de rua, muitos deles loucos declarados; nas histórias folclóricas e formas narrativas orais; nas ocasiões cerimoniais e ritos de passagem; na nova linguagem, na música e no ritmo da cultura popular urbana, assim como nas tradições politicas e intelectuais — no garveyismo, no “etiopismo”, nas renovações religiosas e no rastafarismo. Este, sabemos, rememorou aquele espaço mítico, a “Etiópia”, onde os reis negros governaram por mil anos, local de uma congregação cristã estabelecida séculos antes da cristianização da Europa Ocidental.
Mas, como movimento social, ele nasceu realmente, como sabemos, naquele “local” fatídico, mas ilocalizável mais próximo de casa, onde o retorno de Garvey encontrou a pregação do Reverendo Hibbert e os delírios de Bedward, levando ao recolhimento na comunidade rastafári, Pinnacle, e a dispersão forçada desta.” (HALL, 2003, p. 42, 43) [sic, grifo nosso]
Hall compara a religião com movimentos sociais e questões míticas (op. cit, p. 42), com traços culturais compartilhados e de aproximação e identidade (p. 66), regionais, urbano-rurais, culturais (p. 69), com etnicidade (p. 70), racismo (p. 71) discriminação, exclusão e diferenciação cultural (p. 72), com tolerância e liberdade de expressão (p. 77), identificação e pertencimento (p. 78), dissidência politica (p. 83), padrões de consumo (p. 93), conflito de gerações e o declínio da religião (p. 94), associações fenotípicas apoiadas numa deturpação da leitura bíblica (p. 192), com teóricos políticos como Marx e Gramsci (p. 295) e a luta ideológica, gerando um repertório religioso (p. 193, 269), artistas como Bob Marley (p. 194), escritores como Bakhtin que estudam a linguagem (p. 234) e enquanto reducionismo econômico (p. 305), sociedade civil (p. 317), movimento social, cultural e ideologia orgânica (p. 321) e bíblica (p. 417).
“Uma outra, inteiramente diferente, e gerada dentro dos poderosos discursos religiosos que tanto tem varrido o Caribe: a associação da luz com Deus e o espírito, e da Escuridão ou “negrume” com o Inferno, o Diabo, o pecado e a condenação. Quando eu era criança e era levado à igreja por uma das minhas avós, pensava que o apelo do pastor negro ao Todo Poderoso, “Senhor, ilumine nossa escuridão”, fosse um pedido bem específico por um pouco de assistência divina pessoal.” (Hall, 2003, p. 192)
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