Biodiversidade e justiça social: a nova EPANB redefine a agenda ambiental do país

04/12/25
Por Kátia Mello [email protected]
Nova portaria consolida a equidade de gênero e raça como pilares inegociáveis

A Portaria que estabelece a Estratégia e o Plano de Ação Nacionais para a Biodiversidade (EPANB 2025-2030), publicada em 25 de novembro e assinada pela ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, deixou de ser apenas um compêndio de metas conservacionistas tradicionais, ao elevar a agenda socioambiental a um novo patamar, consolidando a equidade de gênero e raça como pilares inegociáveis para a governança da natureza no país.

A EPANB é o instrumento nacional oficial que define a visão, missão, objetivos estratégicos até 2050, além de metas nacionais até 2030 e um plano de ação de 2025 a 2030 para biodiversidade.

Essa nova abordagem, que une conservação à justiça social, é resultado de ação consistente e contínua de Geledés-Instituto da Mulher Negra, com apoio do WWF e do Instituto Alana na construção do plano. “É um avanço importante a nova Estratégia Nacional para a Biodiversidade apresentar enfrentamento ao racismo ambiental, que estrutura quem preserva e quem perde no Brasil”, afirma Ester Sena, assessora de Clima e Juventude de Geledés.  

A Portaria, fundamentada no Decreto nº 12.485/2025, não se limita a replicar os objetivos globais de proteger e restaurar ecossistemas. Sua maior inovação reside na integração programática de temas de justiça social. A Meta 22, em particular, é o eixo catalisador desta mudança

Ao exigir a implementação e o monitoramento, até 2030, de políticas públicas que assegurem o protagonismo e a participação plena, equitativa e inclusiva de povos indígenas, comunidades tradicionais, agricultores familiares, mulheres e meninas, e a população LGBTQIAPN+, a EPANB formaliza a intersecção entre biologia e sociologia. A menção explícita à perspectiva de raça e etnia e à abordagem intergeracional dentro desta Meta garante que o acesso à tomada de decisão e à justiça ambiental deixe de ser um apêndice retórico e passe a ser uma obrigação de política pública monitorável.

Este compromisso é reforçado na Meta 23, que é taxativa: Assegurar a equidade de gênero na implementação da EPANB. A Meta exige uma abordagem intergeracional, interseccional e sensível ao gênero. Vai além da mera participação, demandando o reconhecimento da igualdade de direitos e acesso à terra, territórios e recursos financeiros para mulheres e meninas, e a população LGBTQIAPN+. A EPANB, dessa forma, transcende a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), ao se comprometer com a elaboração de um Plano de Gênero da EPANB especificamente desenhado para o contexto nacional, mas com base no Plano de Gênero da própria CDB.

“A população negra, populações indígenas e tradicionais são guardiões históricos da sociobiodiversidade, mas continuam sendo os mais ameaçados pelos projetos que devastam seus territórios. Sem participação real dessas comunidades, sem proteção territorial e sem repartição justa dos benefícios, a EPANB corre o risco de repetir a lógica colonial que sempre tratou a natureza como recurso para poucos. Biodiversidade sem justiça racial não é futuro, é continuidade de desigualdades”, diz Ester.

Para a produção de políticas efetivas, a assessora de Clima de Geledés destaca a relevância de métricas claras: “Mencionar desagregação de dados de raça e gênero também mostra a participação de organizações negras no processo de construção do Plano é algo central na produção de políticas.” No entanto, a implementação requer vigilância e ação constante. Ester Sena adverte que, embora as intenções sejam inovadoras, o risco de falha é real sem a garantia de participação e justiça territorial.

Michel Santos, coordenador de Políticas Públicas do WWF-Brasil e que participou da construção do plano, reforça as suas condições específicas do plano. “A EPANB recém publicada chega em um momento em que o Brasil precisa tornar seus compromissos internacionais uma realidade no território. E a política brasileira só será bem-sucedida se incorporar equidade desde o início — não como um detalhe, mas como uma condição.”

Santos destaca que o documento é um marco por acolher demandas centrais do movimento social e ambiental e assim como Ester Sena, cobra por avanços. “Defendemos que os desdobramentos da EPANB possam gerar dados desagregados por raça e gênero — condição básica para monitorar desigualdades e orientar políticas efetivas; um Plano de Gênero da biodiversidade alinhado ao Plano de Gênero da CDB – garantindo transversalidade e indicadores robustos até 2030; metas explícitas de combate ao racismo ambiental e proteção de territórios vulnerabilizados; reconhecimento da periferia como espaço de biodiversidade e de direitos; e implementação de políticas públicas que assegurem raça e gênero como eixos estruturantes até 2030.”

Santos ainda sublinha a natureza política da conservação: “A conservação da natureza não é neutra. Quando políticas ambientais desconsideram desigualdades históricas, elas podem aprofundá-las. O combate ao racismo ambiental precisa ser entendido como política de biodiversidade e clima — e não apenas de direitos humanos.” E conclui, mirando a liderança global: “Se o Brasil quer liderar o mundo em biodiversidade, precisa liderar também em justiça social, racial e de gênero. Com transparência, participação e coragem política, nós conseguiremos — o trabalho de Geledés é prova disso.”

A dimensão de justiça social é ainda mais destacada na Meta 8, que aborda a minimização do impacto da mudança do clima sobre a biodiversidade. A EPANB insere, com precisão cirúrgica, o compromisso de combater o racismo ambiental. Esta é uma inclusão poderosa. O racismo ambiental, que se manifesta na desproporcional exposição de comunidades racializadas e de baixa renda a riscos e degradação ambiental, é agora reconhecido como um obstáculo sistêmico à resiliência climática e à conservação da biodiversidade. Ao priorizar ações de mitigação e adaptação segundo os princípios da justiça climática, a Portaria exige que todas as estratégias (como o estabelecimento de uma Rede Nacional de Conectividade) sejam implementadas de forma a corrigir vulnerabilidades históricas, e não apenas geográficas.

Em resumo, a EPANB 2025-2030 é muito mais do que um plano de conservação. É um manifesto de política pública que reconhece a urgência de agir contra a perda de biodiversidade, mas o faz munida do compromisso de desmantelar, simultaneamente, as estruturas de exclusão e desigualdade. Ao incluir gênero, raça e periferia em seu escopo central, o Brasil consolida uma abordagem ecossistêmica que é, sobretudo, humanista e profundamente justa. O desafio, agora, é a implementação rigorosa e o monitoramento fiel destas promessas de equidade até 2030.

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