Brasil só criou Lei Maria da Penha após sofrer constrangimento internacional

No Brasil, já é quase tradição que a comoção popular diante de uma tragédia se infle tanto a ponto de mexer com as leis.

A farmacêutica Maria da Penha: drama que obrigou o Brasil a criar uma lei especialmente voltada para a proteção das mulheres. Foto: Elza Fiúza/ABr

Ricardo Westin

Na virada dos anos 80 para os 90, os sequestros dos empresários Abilio Diniz e Roberto Medina forçaram a criação da Lei de Crimes Hediondos, que enumera os crimes que não são passíveis de fiança e que torna mais difícil a progressão da pena (a maior parte da pena deve ser cumprida em regime fechado, na prisão). A lei seria endurecida em resposta ao assassinato da atriz Daniela Perez e, depois, à morte do menino João Hélio Fernandes, num roubo de carro.

A Lei da Tortura nasceu em 1997, na esteira da divulgação de um vídeo que mostrava policiais espancando inocentes — um deles foi assassinado — na Favela Naval, em Diadema (SP). A nova lei transformou a tortura em crime, punível com até 21 anos de prisão.

Aterrorizante, a história da farmacêutica Maria da Penha Fernandes teve ingredientes para chacoalhar a opinião pública da mesma maneira. No fim dos anos 70, ela vivia em Fortaleza, casada com um professor universitário. Após quatro anos de casamento, o carinho do marido deu lugar ao ódio. Do dia para a noite, ela se viu no inferno, vítima de berros e insultos, humilhada e intimidada diariamente. Pelo temor de ser espancada, Maria da Penha não conseguia reagir.

À queima-roupa

Numa madrugada de 1983, o marido simulou um assalto à própria casa e, com uma espingarda, atirou à queima-roupa na espinha da mulher adormecida. O plano falhou. Maria da Penha sobreviveu, mas ficaria para sempre presa a uma cadeira de rodas.

Ela passou quatro meses hospitalizada e voltou para casa porque não imaginava que o disparo havia partido do marido. Logo viria o segundo atentado. Dessa vez sem fazer teatro, ele a derrubou da cadeira de rodas sob um chuveiro ardilosamente danificado. Maria da Penha só não morreu eletrocutada porque se agarrou, aos gritos, à parede do boxe e a faxineira correu para acudi-la.

Na época, porém, aquele pesadelo não teve o mesmo apelo da história dos empresários sequestrados ou dos inocentes torturados na Favela Naval. A farmacêutica não conseguiu provocar uma reação nacional. Ela teria de esperar quase 25 anos até que a Lei Maria da Penha — que protege as mulheres da violência doméstica e pune exemplarmente os agressores — fosse aprovada, em 2006. E não em decorrência do clamor da sociedade, mas sim de pressões internacionais sobre o governo brasileiro.

O marido de Maria da ­Penha protagonizou o exemplo mais acabado da permissividade das leis, da debilidade do sistema judiciário e da força do machismo. As tentativas de homicídio ocorreram em 1983. A sentença de prisão só saiu em 1991. Em razão de recursos judiciais, nem sequer chegou a ser preso. A condenação decidida pelo júri foi anulada por supostas falhas no processo. Em 1996, ele voltou a ser julgado e condenado. Uma vez mais, as apelações o mantiveram livre, como se jamais houvesse perpetrado crime nenhum.

Sentindo-se abandonada pela Justiça, a farmacêutica decidiu narrar seu drama na autobiografia Sobrevivi… Posso Contar (editora Armazém da Cultura). O livro caiu nas mãos de duas entidades de defesa dos direitos humanos, que em 1998 lhe propuseram denunciar o descaso do Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em Washington. Maria da Penha topou.

Na queixa, argumentaram que aquele não era um episódio isolado. Entre os documentos, enviaram uma pesquisa que apontava que, das denúncias de violência doméstica apresentadas aos tribunais do país, pífios 2% resultavam em condenação.

Silêncio

O Brasil ignorou os pedidos de esclarecimento enviados de Washington. Ante o silêncio, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos decidiu em 2001 fazer uma condenação pública, para que o mundo ouvisse. Acusou o país de covardemente fechar os olhos à violência contra suas cidadãs. Foi uma humilhação internacional.

Só então o governo começou a se mexer por uma lei contra a violência doméstica. Organizações feministas ajudaram na redação do projeto.

A pressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos também foi decisiva para que o marido de Maria da Penha fosse posto atrás grades, em 2002 — 19 anos e meio após os atentados. Os crimes caducariam aos 20 anos.

Em 2006, o projeto foi aprovado pela Câmara e pelo Senado e sancionado por Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente na época. A Lei 11.340 ganhou o apelido de Lei Maria da Penha — justa homenagem à mulher que se recusou a aceitar a inércia das instituições e mudou o destino das brasileiras para sempre.

Fonte: Jornal do Senado

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