A esmola é o jeito preferido de doar do brasileiro –65% o fazem. A doação de bens (roupas, alimentos e objetos) é a opção de quase metade da população (48%). Já o dízimo é uma prática adotada por 38%. No Brasil, mais gente prefere doar sangue (33%) do que apoiar organizações da sociedade civil (OSCs), escolha de 28%. Apenas 17% dos brasileiros estão dispostos a doar o próprio tempo sendo voluntários.
Estes são alguns dos principais dados de uma pesquisa feita pela Quaest a pedido da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, à qual a Folha teve acesso com exclusividade, para medir até que ponto o engajamento do brasileiro com causas sociais se traduz na prática.
O estudo “Retrato da Solidariedade –Comportamento Pró-Social no Brasil” ouviu 2.545 pessoas maiores de 18 anos em dezembro de 2023, em entrevistas presenciais em domicílios de 120 cidades, de cinco regiões do país. A margem de erro é de 2%, com nível de confiança de 95%.
“Somos um país que tem a cultura de doação por impulso. Nas grandes catástrofes humanitárias, somos um povo solidário. Nos outros momentos, não nos preocupamos. A cidadania não é um traço cultural do brasileiro, não somos um país cidadão”, diz o médico pediatra José Luiz Egydio Setúbal, 68, que dirige a fundação que leva o seu nome, voltada à promoção da saúde na infância.
Segundo ele, “o Brasil é um país informal”, que não oferece incentivo às doações, como os Estados Unidos e a Europa. No exterior, a filantropia é apoiada pela legislação, a fim de fomentar o desenvolvimento da economia –mas, no Brasil, é sinônimo de caridade. “Grandes universidades estrangeiras contam com o apoio de fundações e dos ‘endowments’, algo que não acontece aqui”, diz ele, referindo-se aos fundos filantrópicos que recebem doações de pessoas físicas e jurídicas.
Setúbal é o quinto dos sete filhos de Olavo Setúbal, fundador do Itaú, o maior banco privado da América Latina. A fundação que leva seu nome é mantenedora do hospital Sabará, em São Paulo, referência no atendimento a crianças, e do Instituto Pensi, que desenvolve pesquisas sobre saúde infantil.
O médico afirma que a pesquisa encomendada à Quaest começa a ser anual a partir de agora, com o objetivo de apoiar as OSCs no entendimento de como o brasileiro ajuda o próximo e quais são as ferramentas e abordagens mais adequadas para captação de recursos.
O terceiro setor, que reúne instituições e movimentos da sociedade civil, como ONGs (organizações não governamentais) e OSCIPs (organizações da sociedade civil de interesse público), enfrenta dificuldades. Recentemente, a associação Doutores da Alegria, criada há 33 anos e reconhecida pelo trabalho lúdico e terapêutico com crianças internadas em hospitais públicos, anunciou o cancelamento de 40% das atividades previstas para este ano devido à queda no volume de doações.
MÉDIA DOADA A INSTITUIÇÕES FOI DE R$ 17 AO MÊS
Para Setúbal, os “ricos doam pouco” no Brasil. O levantamento da Quaest confirmou esta percepção. Entre os que fazem doações a OSCs e têm renda mensal familiar de até dois salários mínimos, 78% doaram em 2023; nesta faixa de renda, o valor mediano doado foi de R$ 100. Já entre as famílias que ganham mais de 20 salários mínimos por mês, os doadores somaram 57%, com doação mediana de R$ 1.000 no ano.
No Brasil, entre os 28% da população que fizeram alguma doação a OSCs, 43% doaram entre R$ 100 e R$ 500 no ano, enquanto 34% doaram até R$ 100. “Na mediana das doações [que exclui quem doou mais e quem doou menos], chegamos ao valor de R$ 200 ao ano em 2023”, diz Flávio Pinheiro, pesquisador da fundação. Ou seja, o equivalente a menos de R$ 17 ao mês.
Entre os 28% que doaram no ano passado, uma fatia de 37% o fez de maneira regular, mensal. “A maior parte das doações –49%– é feita por dinheiro vivo e outros 30% por Pix”, diz Pinheiro. “Isso demonstra o quanto as doações não são programadas, ocorrem por impulso.”
O levantamento aponta essa doação sem planejamento: para 83% dos que doam, o valor é decidido na hora. Apenas 11% determinam um valor fixo por ano e 6% definem um percentual dos seus ganhos.
Apenas 3% fazem doações por meio do IR (Imposto de Renda). “É um percentual muito baixo”, diz Pinheiro. Segundo o levantamento, entre os que nunca realizaram doações por este meio, 71% justificaram o comportamento por não declararem IR. Outros 23% afirmaram não saber que existia essa possibilidade.
Entre os 28% que doam às OSCs, mais da metade (54%) o fizeram estimulados por familiares, amigos e conhecidos. O segundo principal motivo foi para “arredondar o troco” (41% das respostas), seguido por redes sociais (33%) e abordagem na rua (28%).
Já entre os que não fizeram doações a organizações da sociedade civil, 33% disseram que não tinham dinheiro, 22% afirmaram que nunca receberam um pedido como este, 20% afirmaram que a doação não seria bem usada, enquanto para 16% o governo é quem deveria fazer doações.
‘DESEJABILIDADE SOCIAL’ PODE DISTORCER RESPOSTAS
A pesquisa identificou um “viés de desejabilidade social”, que ocorre quando um entrevistado se sente constrangido a responder algo que é socialmente desejável. Isso foi observado na frequência de doação de sangue, por exemplo: 23% disseram que doaram ao menos uma vez no ano passado. Mas pelos números do Ministério da Saúde, só 2% da população tomou essa iniciativa.
Ainda sobre as doações de material biológico, 8% disseram já ter feito cadastro como pessoa doadora voluntária de medula óssea em algum hemocentro. No entanto, de acordo com o Sistema de Doações do Governo Federal, 3,6% dos brasileiros adultos estão cadastrados para este fim.
O estudo questionou os brasileiros se eles dariam permissão para que a família doasse seus órgãos, tecidos e partes do corpo em caso de morte cerebral: 66% disseram que sim. Números da ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), porém, apontam que só 28% das possíveis doações no país foram concretizadas. Em 45% dos casos, as famílias recusaram a doação.
Em relação aos maiores problemas que o país enfrenta hoje, os entrevistados apontaram desigualdade, pobreza e fome –cada um com uma fatia de 19% das respostas. Outros 17% responderam saúde, 12%, educação, e 11%, segurança. “Apenas 2% apontaram o meio ambiente, mesmo levando em conta todos os problemas das queimadas e dos eventos climáticos extremos”, diz Pinheiro.