Brincadeira na ramada e no terreiro: relações afroindígenas no Pará

Nesse texto, analisa-se as relações afroindígenas a partir de um indicador: a palavra “brincar”. Ela foi ouvida em dois ambientes sagrados distintos, primeiro nas Terras Indígenas do Alto Rio Guamá em 2018. Depois, em 2022, no Terreiro de Mina Nagô de Iansã e Xangô em São Miguel do Guamá. Ambas as localidades são pertencentes à região nordeste do estado do Pará, e têm como elemento comum, o rio Guamá.

Historicamente, na região amazônica, a religiosidade das populações urbanas e rurais perpassa pela crença em pajés, que adivinhavam o paradeiro de crianças, curavam os males da alma e do corpo por meio de rezas e puçangas – beberagens feitas de ervas. Embora a presença negra no Pará date de fins do século XVII e tenha se intensificado  em meados do século XVIII como apresenta Vicente Salles, é a partir do século XX, com a migração de maranhenses atraídos pelo ciclo da borracha, que as práticas de pajelança começaram a ser substituídas por cultos de matriz africana, como o Tambor de Mina do Maranhão. Contudo, houve uma dinâmica de contato entre essas práticas e crenças, que se influenciaram mutuamente.

Nesse sentido, a pajelança, seja ela indígena ou cabocla não foi esquecida, mas incorporada aos cultos de matriz africana, dando a eles características afroindígenas. Ou seja, os cultos afro-paraenses são formados por elementos negros e indígenas que se homogeneízam no espaço sagrado do terreiro por meio de linhas ou correntes.

As linhas são agrupamentos em que as entidades estão inseridas ou remetem aos campos da natureza onde as mesmas residem, como a mata ou as águas, por exemplo. Dentre elas destacamos as linhas de cura ou de pena e maracá, de jurema, de preto velho e linha de boiadeiros. Já na aldeia, encontramos a categoria  Karuwara, que podem ser identificados como seres não humanos capazes de causar adoecimentos, mas também curar e interagir com os humanos durante os ritos de passagem. Os Karuwaras também podem ser agrupados em campos da natureza a partir de suas relações com a água (mãe d’água) ou com a floresta (curupira).

Os pesquisadores, tanto da Antropologia quanto da História, nos apresentam muitas referências das práticas religiosas dessa região. Mais precisamente as pajelanças praticadas tanto em comunidades indígenas, quanto nas zonas urbanas e rurais de cidades como São Luiz, no estado do Maranhão, e Belém, Vigia e Bragança, no estado do Pará. Além do percurso histórico dessas práticas até o advento das religiões de matrizes africanas no estado do Pará.

É notório que no decorrer desse processo de contato religioso, os cultos afro-brasileiros tiveram maior projeção em detrimento da pajelança. O primeiro com grande destaque nos centros urbanos, enquanto o segundo com mais evidência no meio rural e em comunidades tradicionais. Mas ambos resistindo ao processo romanizador e de “civilização” impostos pela Igreja Católica e pelo Estado, que visavam o “progresso” para essa região.

Para além da experiência de resistência, o contato entre esses dois modos de cultos tradicionais permite traçar indicadores de relações afroindígenas. São indicadores pois não se trata de identidade ou de afirmação política, muito menos do resultado da miscigenação, pois não a compreendemos como um terceiro elemento. Mas sim das práticas que consciente ou inconscientemente os pajés, Babalorisás e Ìyálòrìsás exercem, que carregam elementos negros e indígenas, ou até mesmo as divindades que estão hora nos terreiros, hora nas aldeias.

“Brincar diferente” é um termo atribuído pelo pajé Beware Tembé ao modo como a Pajé Francisca Tembé pratica a pajelança na Terra Indígena Alto Rio Guamá (TIARG), no Pará. Em entrevista com Beware no dia 06 de abril de 2018, na aldeia Sede, ele afirmou que: “Assim, pra mim Umbanda e pajelança é a mesma coisa”. O entrevistado fez, ainda, referência à pajelança de Francisca Tembé: “pra mim né, porque é assim, ela lá eu vejo no brincar dela é assim como se fosse um […] branco brincando. […] porque cada um de nós tem um espírito, só que é uns mais fortes, outros mais fracos”.

Maracás na Ramada da Aldeia Sede. Terra Indígena Alto Rio Guamá-PA, 07 de abril de 2018. Fonte: Acervo pessoal do autor.

A fala de Beware traz elementos relevantes. O primeiro é que para os indígenas Tembé, a categoria “branco” se refere a todos os sujeitos que não são indígenas. Já o segundo são as diferenciações feitas por ele ao se referir aos espíritos de índio e de branco. Desses, apenas os espíritos de índios, isto é, as Karuwaras, brincam na ramada, que é o local onde acontecem os rituais de passagem. Em segundo lugar, afirma que dona Francisca brinca como os não indígenas, ou seja, como os praticantes das religiões de matrizes africanas.

A respeito da brincadeira na ramada, Beware afirma que “[…] quando nós tamo brincando aqui, geralmente esses que tem espírito de branco, espírito que eu falo assim, os cabôco de branco, geralmente num brinca com nós aqui, brinca quem tem espírito de índio mesmo, de antigamente”. Isso quer dizer que no espaço sagrado da ramada, apenas ancestrais indígenas participam dos rituais de pajelança, ou seja, da brincadeira.

Contudo, Beware segue sua fala trazendo como exemplo duas pajés que possuem espíritos de branco, os caboclos. Segundo ele, “[…] a tia Chica, a tia Leca já tem esse espírito assim de cabôco, mas é de branco entendeu, mas se for assim pra pegar elas pego, porque elas têm caboco de índio, só que como elas já são muito mais habilidosas com os pontos de se proteger, aí elas já se previne”. 

Duas pajés foram citadas por Beware, dona Francisca, a qual ele chama tia Chica, e tia Leca. Segundo ele, as duas têm espíritos de branco, ou seja, caboclos, categoria essa cultuada em terreiros de religiões de matrizes africanas como Umbanda e Mina Nagô, por exemplo. Contudo, o pajé Beware ressalta que pelo fato de elas terem caboclos indígenas, elas conseguem brincar na ramada, mas elas são habilidosas e se protegem.

Uma vez que foi apresentada uma pequena parte da pajelança praticada entre os Tembé do alto rio Guamá, saímos das aldeias e incursionamos rio abaixo, para outra realidade local. Chegamos à cidade de São Miguel do Guamá, onde está localizado o Terreiro de Mina Nagô de Iansã e Xangô, que é liderado pela Ìyálòrìsá Margarida Sodré. No terreiro, encontramos referências ao termo “brincadeira” apresentado na aldeia por Beware.

Em entrevista realizada no dia 23 de fevereiro de 2022, no Terreiro de Mina Nagô de Iansã e Xangô, A Ìyálòrìsá Margarida Sodré ao falar sobre o brinquedo no contexto de seu terreiro explica que “[…] a gente fala brinquedo, porque antes era assim tipo “vamos brincar”, a gente sempre ia fazer uma brincadeira e aí ficou, isso é uma fala popular […]”.

A partir da fala de Margarida Sodré, percebe-se que a brincadeira é um termo utilizado pelos antepassados para se referir aos rituais afro-religiosos em que acontecem o transe, isto é, a incorporação de entidades por parte dos integrantes dessas religiões. É importante destacar que, segundo Margarida Sodré, esse termo se popularizou nas comunidades tradicionais de terreiro dessa região.

A Ìyálòrìsá segue a entrevista fazendo uma categorização sobre o que seria o brinquedo. Segundo Margarida Sodré “o que a gente chama de brinquedos são as correntes, mas é porque é uma linguagem popular, entendeste? Não é que seja um brinquedo, é as correntes”. Ou seja, os brinquedos são as linhas ou agrupamentos de caboclos a partir do campo da natureza ao qual pertencem.

O caboclo indígena Sete Flexas no Terreiro de Mina Nagô de Iansã e Xangô. São Miguel do Guamá-PA, 18 de dezembro de 2021. Fonte: Acervo pessoal do autor.

Margarida Sodré aproxima a brincadeira a termos utilizados nos cultos afro-brasileiros. De acordo com a Ìyálòrìsá, “[…] vários terreiros aí ainda têm esse termo, ‘vamos fazer uma brincadeira’, quer dizer uma baia, uma gira, aí é a mesma coisa para o nosso linguajar de antes […].” A baia ou baiar são as danças rituais que acontecem durante uma gira, o ritual religioso propriamente dito. Esse conjunto, os pontos cantados e o toque do tambor conduzem os religiosos ao transe e a brincadeira acontece.

Entretanto, a utilização do termo brincadeira é, segundo Margarida Sodré, um linguajar de antes e que provavelmente deve estar se perdendo nos terreiros mais novos. Contudo, é importante destacar que esse “antes” por ela proferido, relaciona-se à pajelança cabocla praticada no passado, na qual estão inseridos homens e mulheres que praticavam a cura do corpo e da alma. Eles e elas adivinhavam o paradeiro de crianças desaparecidas, produziam beberagens para curar doenças e por meio de suas rezas, do balançar de seus maracás e da fumaça de seus tawaris, descobriam feitiços e feiticeiras.

Portanto, as práticas realizadas em algumas aldeias da TIARG, entre os Tembé, e aquelas realizadas no Terreiro de Mina Nagô de Iansã e Xangô, na cidade de São Miguel do Guamá, nos permitem visualizar indicadores de referências afroindígenas resultantes dos contatos entre negros africanos e povos originários no nordeste paraense. Além de identificar os modos de resistência ao racismo e a intolerância religiosa disfarçados de “civilização e progresso” impostos a esses povos tradicionais. 

Assista ao vídeo do historiador Daniel Xavier da Fonseca no Acervo Cultne sobre este artigo:

Nossas Histórias na Sala de Aula

O conteúdo desse texto atende ao previsto na Base Nacional Comum Curricular (BNCC):

História

Ensino Fundamental: EF07HI09 (7º ano: Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da América para as populações ameríndias e identificar as formas de resistência. EF08HI27 (8º ano: Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas).

Ensino Médio: EM13CHS104 (Analisar objetos e vestígios da cultura material e imaterial de modo a identificar conhecimentos, valores, crenças e práticas que caracterizam a identidade e a diversidade cultural de diferentes sociedades inseridas no tempo e no espaço). EM13CHS502 (Analisar situações da vida cotidiana, estilos de vida, valores, condutas etc., desnaturalizando e problematizando formas de desigualdade, preconceito, intolerância e discriminação, e identificar ações que promovam os Direitos Humanos, a solidariedade e o respeito às diferenças e às liberdades individuais).

Ensino Religioso

Ensino Fundamental: EF05ER04 (5º ano: Reconhecer a importância da tradição oral para preservar memórias e acontecimentos religiosos). EF05ER05 (5º ano: Identificar elementos da tradição oral nas culturas e religiosidades indígenas, afro-brasileiras, ciganas, entre outras). EF05ER06 (5º ano: Identificar o papel dos sábios e anciãos na comunicação e preservação da tradição oral). EF07ER03 (7º ano: Reconhecer os papéis atribuídos às lideranças de diferentes tradições religiosas). EF07ER05 (7º ano: Discutir estratégias que promovam a convivência ética e respeitosa entre as religiões). EF07ER08 (7º ano: Reconhecer o direito à liberdade de consciência, crença ou convicção, questionando concepções e práticas sociais que a violam).

Daniel Xavier da Fonseca

Mestrando em Estudos Antrópicos na Amazônia, graduado em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA).

E-mail: [email protected]

Instagram: @danielxavier394


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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