As cabeças dos racistas – Afonso Nascimento

Tratar do racismo em Sergipe é um assunto delicado, dizem. E existe tema que não possa ser discutido publicamente numa democracia vigorosa como a brasileira? Não é tratando pragmaticamente dos problemas e buscando consensos que as democracias se fortalecem? Não foi essa a melhor lição extraída dessas gigantescas manifestações cívicas que sacudiram o Brasil por quase quinze dias? Se o racismo em Sergipe é uma “ferida social”, ele necessita ser discutido com seriedade e serenidade por todas as pessoas.

Afonso Nascimento  –  Advogado e Professor de Direito da UFS

O racismo é um sistema de dominação de um grupo racial que se acha superior a outro(s) e que quer, por isso, mantê-lo(s) à margem quanto à divisão da riqueza, da cultura e do poder. Toma a forma concreta ao mesmo tempo como ideologia e comportamentos ou práticas, que podem ser ou não ser violentas. O racismo pode ser institucionalizado ou difuso socialmente. No caso sergipano, já vou logo adiantando, o racismo se materializa através de um modo difuso que o faz parecer inexistente.

Em todas as latitudes, os racistas são tipos humanos doentios. Para desqualificar aquelas pessoas diferentes deles, usam quase sempre os seguintes tipos de pensamentos e práticas: a) “animalizam” o grupo dominado (“não tem alma”, comparando-o a animais, com os macacos em relação aos africanos e afro-descendentes), b) ainda como parte da “animalização” dos grupos raciais dominados, chamam os diferentes de burros, ou de menor ou inferior inteligência; c) “infantilizam” os membros do grupo (tratando pessoas adultas como “boys”, “moleques”, etc.) chegando ao ponto de irresponsabilizá-los criminalmente, como queria o médico Nina Rodrigues,  no século passado na Bahia) ou então “caprichando” na aplicação do Código Penal aos grupos dominados, como acontece em Sergipe desde sempre; d) constroem um conjunto de ideias negativas ou estereótipos sobre os diferentes que buscam colocar a auto-estima destes lá embaixo; e) procuram sempre pensar o diferente sempre para abaixo, desqualificando suas competências profissionais, o valor de seus diplomas e conquistas escolares, ou diminuindo o seu valor como seres humanos.

O racismo sergipano tem seus traços singulares. E só poderia ser velado, dissimulado, cheio de sutilezas, considerando que os não brancos de todos os tipos são maioria em Sergipe, em torno de 80%. É uma mistura de racismo, colorismo e anatomismo. Em cima dessas categorias, as pessoas diferentes são classificadas e hierarquizadas. Ou desclassificadas! Pode ser racismo cru, no caso de branco e não branco. Também é feita uma classificação das pessoas segundo cor da pele (as pessoas mais claras, embora com evidentes traços do grupo dominado, passam a ter um tratamento diferente). E também em função dos traços anatômicos de pessoas diferentes (as pessoas mais escuras mas com traços caucasianos são tratadas diferentemente e marcam posição em relação a outros escuros). Com isso, os afro-descendentes mais escuros e com traços faciais mais próximos de africanos “de verdade” são isolados. Todos não brancos ficam divididos.

Como os brancos sergipanos são uma minoria com consciência disso, eles não querem conflitos com os não brancos (afro-descendentes, nativo-descendentes, etc.). Hostilizar essas pessoas transformaria a sociedade sergipana um barril de pólvora e seria necessário construir um apartheid sergipano. Quem quer isso? E eles precisam de mão-de-obra dócil etc. A miscigenação tem funcionado como um fator positivo na integração dos diferentes grupos raciais sergipanos. Um branco pode ter um parente não branco etc. Além de haver os “brancos da terra”, ou seja, os mestiços com cara de branco.

Embora sem rivalidades raciais ou étnicas escancaradas (como no Sudeste e no Sul do Brasil), o racismo sergipano existe e é uma herança diferente da colonização. Noutras palavras, Sergipe ainda não entrou numa fase pós-colonial, está parado no tempo.  É o peso da escravidão que, um século depois do seu fim e quase três séculos depois de trabalho não remunerado, não descontruiu o peso daquele passado colonial – que, aliás, também pode ser percebido na questão da reforma agrária em Sergipe.  Como disse antes, na divisão do bolo da riqueza econômica, na divisão do bolo da cultura e na divisão do bolo do poder, os brancos sergipanos, embora eles sejam minoria,  detêm o controle majoritário sobre as três fatias do bolo referido, o que é inversamente proporcional a sua presença na população – não é demais repetir.

Dou exemplos de racismo: a maioria dos empregados dos dois shopping centers de Aracaju é ou de brancos e ou de mestiços não próximos de “verdadeiros” afro-descendentes. A explosão emocional daquela médica, que foi impedida de embarcar para a sua lua de mel na Argentina por um empregado afro-descendente da empresa aérea GOL no aeroporto de Aracaju, foi um momento de sinceridade e sem sutileza do que um certo número de brancos da elite pensa sobre os não brancos em Sergipe.

O que torna o racismo sergipano potencialmente explosivo é, apesar dos “amortecedores” mencionados, a fusão entre raça e classe em Sergipe. Com efeito, classe tem cor em Sergipe. Como são enormes as distâncias sociais entre as classes em Sergipe, elas também refletem as distâncias abissais entre brancos e não brancos. Em Sergipe, os afro-descendentes estão distribuídos numa pirâmide de classes mais ou menos assim: existe uma classe alta (em muitos lugares não existe uma “burguesia” afro-descendente como aqui) e também uma classe média com poder de compra mais ou menos alto. Agora a sua maior participação numérica e o seu maior contingente estão na classe trabalhadora e na chamada “ralé” sergipanas.

Embora sem radicalismos, e levando em conta os progressos já alcançados também em Sergipe, é preciso dizer que se faz urgente dividir o bolo da riqueza econômica entre brancos e não brancos; é preciso dividir o bolo da cultura entre brancos e não brancos, permitindo um muito maior acesso dos afro-descendentes e nativo-descendentes à cultura, pela via educacional e de políticas públicas (A propósito, existem muitas boas leis federais que ainda não saíram do papel em Sergipe por conta da má vontade das autoridades estaduais e municipais e por conta também de professores da rede estadual e municipal); e é preciso dividir o bolo do poder em Sergipe. O poder em Sergipe ainda é muito branco – embora existam não brancos ocupando importantes cargos de poder.

Para terminar, deixe-me dizer só mais uma coisa. Da mesma forma que sou contra a luta de classes, sou contra a luta de raças. Mas alguma coisa precisa ser feita para reduzir as distâncias entre brancos e afro-descendentes ou não brancos em geral. Os afro-descendentes sergipanos desconhecem a história da escravidão em Sergipe. Mas sabem que ela significa para eles muita vergonha, muita humilhação e muito sofrimento. Por isso, não enfrentam o passado. Se um bom número de afro-descendentes que estão em posição privilegiada de riqueza, de cultura e de poder defendessem, só um pouquinho, uma divisão mais igualitária da riqueza, da cultura e do poder, a gente melhorava a sociedade sergipana. O mesmo deve ser dito em relação aos brancos liberais e de esquerda (os brancos não são o demônio, afinal!) sergipanos. Se eles dessem uma ajudinha, parando com esse papo de que a sociedade sergipana, por não conflitos raciais nas ruas, não seria racista (contrariamente a todos os indicadores de riqueza, cultura e poder) também ajudariam muito.

 

Fonte: Prmeira Mão

+ sobre o tema

Brancos, vamos falar de cotas no serviço público?

Em junho expira o prazo da lei de cotas nos...

Em junho, Djavan fará sua estreia na Praia de Copacabana em show gratuito

O projeto TIM Music Rio, um dos mais conhecidos...

O precário e o próspero nas políticas sociais que alcançam a população negra

Começo a escrever enquanto espero o início do quarto...

Estado Brasileiro implementa políticas raciais há muito tempo

Neste momento, está em tramitação no Senado Federal o...

para lembrar

O permanente holocausto negro

por: Ricardo Gondim A formação cultural brasileira tem graves deformações....

A face racista da miscigenação brasileira – Por Jarid Arraes

A questão da miscigenação racial no Brasil costuma ser...

O genocídio do jovem negro em marcha

Joca Neto de Belo Horizonte Com mais de 56 mil...

Brasil, um país genocida

“Recebi um telefonema de um policial da família às...
spot_imgspot_img

“Dispositivo de Racialidade”: O trabalho imensurável de Sueli Carneiro

Sueli Carneiro é um nome que deveria dispensar apresentações. Filósofa e ativista do movimento negro — tendo cofundado o Geledés – Instituto da Mulher Negra,...

Militares viram no movimento negro afronta à ideologia racial da ditadura

Documento confidencial, 20 de setembro de 1978. O assunto no cabeçalho: "Núcleo Negro Socialista - Atividades de Carlos Alberto de Medeiros." A tal organização,...

Filme de Viviane Ferreira mescla humor e questões sociais com família negra

Num conjunto habitacional barulhento em São Paulo vive uma família que se ancora na matriarca. Ela é o sustento financeiro, cuida das filhas, do...
-+=