Cena de Cidade de Deus: “negro como bandido” – Foto: Divulgação
O prestígio do filme O Dia de Jerusa (2014) apenas no exterior – ao menos por enquanto – indica que os diretores e produtores brasileiros (em sua maioria brancos) ainda têm receio de bancar histórias negras protagonizados por atores negros de maneira não estigmatizada e estigmatizante.
Por Mariana Queen Nwabasili Especial para o R7*
A restrição ao filme no Brasil é só exemplo de um paradoxo muito nítido, ao menos para nós, negras e negros brasileiros: somos 53% da população do País, mas, se não for de maneira estereotipada (negro como bandido, negra extremamente sexualizada), não nos vemos nas produções cinematográficas e teledramáticas nacionais.
Exemplo dos EUA
É preciso que façamos um movimento já feito nos Estados Unidos, onde tantos seriados de sucesso se basearam na realidade dos negros periféricos e em ascensão, e que já foi atentado pelos países europeus: é preciso questionar por que, sem que haja nenhum esforço ou grande estranhamento, as produções audiovisuais brasileiras são, na esmagadora maioria, protagonizadas, compostas, dirigidas e produzidas por atores, diretores e produtores brancos?
Além de reflexo da desigualdade racial existente no País, isso não é contraproducente, pensando que grande parte da audiência (principalmente televisiva) pode vir de espectadores negros? Mas, antes que qualquer produção venha, como e por que os negros querem se ver nas telinhas e nas telonas?
E, por fim, por que até hoje, a grande maioria dos negros brasileiros não se indignou com todos esses anos de exclusão negra também dos e nos filmes e novelas; não se indignou e se cansou com todos esses anos de produção audiovisual igual e padronizadamente muito mais branca?
Concluo que o embranquecimento vem de longe e fez com que parte de nós nos acostumássemos com suas formas contemporâneas e perversas.
Brasil faz vista grossa
Para além da hipocrisia da maioria dos brasileiros para com as consequências do racismo por aqui refletidas nas relações sociais e, consequentemente, nas produções culturais, o cenário e as cenas tão claras têm relação, entre outras coisas, com a falta de produtores e diretores negros no País, e com a falta de espaço para produções que priorizem histórias e imagens sobre essa parcela da população.
Entretanto, a esquizofrenia persiste: em 2013, por ordem da Justiça Federal (pasmem!), o MinC (Ministério da Cultura) teve de suspender os editais de incentivo à cultura negra lançados em novembro de 2012 por supostamente representarem uma prática racista. A Funarte (Fundação Nacional das Artes) retomou a proposta por meio da Bolsa Funarte de Fomento aos Artistas e Produtores Negros.
As iniciativas e suas tentativas de realização sinalizam o óbvio, para alguns: é preciso produzir produtores e produções negras no Brasil, País que gosta de vender a sua diversidade étnica e cultural, mas faz vista grossa para as contradições em meio a essas diversidades. E não pensem que não teremos de onde partir. Afinal, o formato de O Dia de Jerusa não inventou a roda do cinema negro brasileiro, mas, sim, está em meio a ele, bebe de suas fontes.
Dogma Feijoada
Nos anos 2000 (tarde, mas nunca tarde demais), o Festival Internacional de Curtas Metragens de São Paulo abrigou uma mostra de diretores negros. Na ocasião, o diretor Jefferson De (Gênesis 22, de 1999; Bróder, de 2010), lançou o manifesto Dogma Feijoada, em alusão ao manifesto Dogma 95, criado pelo diretor dinamarquês Lars von Trier (Dogville, 2003; Ninfomaníaca, 2013) em 1995.
Lembrando dos feitos e do caminho já aberto pelos antigos e importantes cineastas negros brasileiros, como Haroldo Costa, Zózimo Bulbul, Antônio Pitanga e Waldyr Onofre, Jefferson De propôs em seu manifesto sete “mandamentos” para a produção do cinema negro no Brasil: o filme tem de ser dirigido por um realizador negro; o protagonista deve ser negro; a temática do filme tem de estar atrelada à cultura negra brasileira; o filme tem de se propor como “urgente”; não pode ter personagens estereotipadas negras ou não negras; o roteiro deve privilegiar o negro comum brasileiro e os super-heróis ou bandidos devem ser evitados.
Como na cultura ancestral, relembremos e retomemos. Porque relembrar é não se alienar.
*MARIANA QUEEN NWABASILI é repórter de Educação do R7. É formada em jornalismo pela ECA (Escola de Comunicações e Artes) da USP (Universidade de São Paulo).