Cafona é ser racista

por Reinaldo Bulgarelli

Ações afirmativas e cotas visam corrigir situações de desigualdade baseadas em discriminação a determinados segmentos. Elas imprimem uma velocidade maior do que a consciência do conjunto da sociedade consegue garantir na solução dos problemas. Fazem todo sentido diante das resistências imensas que compõem as barreiras para dificultar o caminho do grupo discriminado.

Cota para mim é o mesmo que assinar um decreto de que a consciência ética faliu diante dos passos lentos e da resistência imensa que os negros enfrentam. Por isso mesmo apoio ações afirmativas e cotas. Depois da falência, podemos reconstruir nossa civilidade juntos e não na apartação vigente. Neste momento, são trinta e um anos da minha história escutando que o problema é social e não racial, que tudo se resolve apenas com o enfrentamento da pobreza e da insustentável concentração de renda. Não acho justo pedir aos jovens negros que tenham paciência e aguardem do lado de fora enquanto nossa consciência se amplia para não mais precisarmos de cotas. Em 1978, quando me dei conta do que era ser branco neste país racista, meus amigos negros já escutavam essa história e não acho justo que outros jovens continuem sendo enganados por essa retórica que tudo promete e nada de concreto propõe.

Podemos até acelerar esse processo de ampliação da consciência quando há cotas corrigindo as desigualdades. A questão é que não pode haver um tempo imenso distanciando nosso discurso da prática. Se hoje nos damos conta do racismo que nos atrapalha a todos, hoje mesmo podemos fazer algo para melhorar a qualidade das relações raciais. Mas a retórica joga para o futuro a solução e eu já venho assistindo isso na década de 70, 80, 90 e nesta primeira década do século XXI. Isso para falar em primeira pessoa, sem querer evocar aqui todos aqueles que vieram antes de mim. Podemos continuar pedindo paciência aos negros? Acredito que está na hora de brancos terem paciência com as conquistas que o movimento anti-racista vem realizando no campo da educação e do mercado de trabalho, por exemplo.

Trabalho atualmente com o meio empresarial, que ampliou minha consciência e meu compromisso com o anti-racismo por várias razões. Uma delas foi perceber que cresce a consciência entre empresários e as altas lideranças empresariais de que o racismo é prejudicial às pessoas, aos negócios e à sociedade. Muitos já se deram conta de que o racismo restringe possibilidades na composição de equipes efetivamente preparadas e na construção de planos condizentes com a realidade do país. Com argumentos muito pragmáticos, há quem tenha se dado conta de que o mercado interno pode ser ampliado na mesma medida em que se combate o racismo nos processos de escolha do próprio quadro de funcionários.

Eu continuo achando que combater o racismo é a coisa certa a ser feita, mas estes argumentos práticos para o sucesso dos negócios apenas fortalece minha convicção de que é um erro para todos apostar na discriminação racial e mantê-la sem alterações significativas por séculos. Creio também que é preciso ser mais firme na reversão dos argumentos para gerar reflexões de tipo novo em quem está numa situação privilegiada e não se dá conta disso. O racismo é uma ideologia que aparentemente beneficia alguns em detrimento de outros, os escolhidos para ficar do lado de fora. Ele prejudica a todos e dar-se conta disso amplia a solidariedade entre todos no aprendizado necessário para uma vida sem a prática do racismo.

Paulo Borges, diretor do São Paulo Fashion Week, ficou em grande evidência diante das ações que visam ampliar o número de negros neste empreendimento da moda que, segundo ele mesmo diz, trata-se de um negócio, muito mais do que uma arte. Ele disse também que essa discussão sobre negros na Fashion Week é cafona. Tem toda razão. O racismo é cafona, para repetir esse termo que alguns gostam de utilizar para se referir à falta de bom gosto na maneira de ser. Não é chique ser racista. Coisa mais sem sentido, por isso mesmo, é dizer que no Brasil não há modelos negros preparados para as passarelas. O argumento racista sempre coloca a responsabilidade sobre os negros e usam essa história da falta de preparo. É ingenuidade, piloto automático ligado que reproduz o que ouviu falar na esquina ou má vontade mesmo para barrar as pessoas segundo seu pertencimento étnico-racial.

A cafonice chega ao ponto de atrasar o pagamento dos modelos negros ou de pagar bem menos do que pagam aos modelos brancos, além de dizer que o Termo de Ajustamento de Conduta, assinado com o Ministério Público, atrapalha a liberdade dos artistas. Arte ou negócios? É preciso entrar num acordo. E arte só com brancos é mais arte ou arte de melhor qualidade? Não deveria se envergonhar quem diz algo deste tipo?

Ao invés de causar vergonha aos que defendem a falta de diversidade nas passarelas, causa vergonha em alguns modelos negros. Fiquei especialmente entristecido com a fala de uma modelo negra que se colocou diante do seguinte dilema: agora não será mais possível saber se me convidaram porque sou bonita ou porque há cotas para negros nas passarelas. Posso ajudá-la dizendo que seria muito bom que modelos brancos também vivessem intensamente esse dilema: será que estamos aqui porque somos bonitos ou porque os organizadores disso tudo são racistas e só reconhecem beleza em quem é branco?

Vejo algumas mulheres com essa mesma questão em empresas que investem em ações afirmativas na carreira feminina: será que fui promovida porque sou competente ou apenas porque sou mulher? Segundo pesquisa do Instituto Ethos, quase 90% da alta liderança das 500 maiores empresas do Brasil é constituída de homens, sobretudo brancos. Mesmo assim, eu nunca vi nenhum grande líder revelar em alguma entrevista que está em crise porque não sabe se alcançou a alta liderança da organização porque é competente ou apenas porque é homem e branco.

Já não se sustenta mais o argumento de que não houve tempo de formar uma liderança feminina porque a entrada significativa da mulher no mercado de trabalho se deu nos anos 70. Quase quarenta anos não foi suficiente para que mulheres alcançassem postos de liderança? Há homens que começaram uma carreira e até já se aposentaram neste mesmo período. As empresas que não são cafonas investem em ações afirmativas para acelerar esse lento processo de conscientização e para enfrentar com inclusão efetiva as resistências impostas pelo machismo.

Mas, têm que conversar com as mulheres e explicitar sua visão para evitar boicotes por parte daquelas que podem salvar a empresa da cafonice do machismo. Elas explicitam a todos que a diversidade evita risco aos negócios, melhora a qualidade das decisões, oferece maiores possibilidades de sucesso ao se lidar com um país também diverso e, acima de tudo, é a coisa certa a ser feita. A diversidade na população economicamente ativa é constituída de homens e mulheres, assim como de brancos e negros, hetero e homossexuais, pessoas com e sem deficiência, pessoas mais jovens e com mais de quarenta anos, entre tantas outras características que podem se transformar em motivo para desigualdades persistentes, naturalizadas e firmemente defendidas com argumentos de que o problema é social.

Ações afirmativas e cotas são conquistas de gente que tem pressa e quer dialogar sobre soluções melhores do lado de dentro e não da janela das organizações. Essa imagem é muito nítida quando escuto que os que estão do lado de fora devem ter paciência porque as mudanças são mesmo lentas e dependem da elevação da consciência de todos. Não podemos conversar na sala da casa ao invés de gritarmos por paciência lá do último andar? Essa multidão, que artificialmente é colocada na base da pirâmide por complexos processos de discriminação negativa, tem que ficar do lado de fora, na chuva, enquanto a gente se entende? Não podemos enfrentar nossos dilemas juntos, olho no olho, no mesmo piso? Não podemos juntos ganhar consciência, nos educarmos, sensibilizarmos e melhorarmos nosso desempenho neste campo da valorização da diversidade? Será que solitariamente um grupo de iluminados vai dar conta dos desafios de nosso tempo? Valorizar a diversidade é preciso e é urgente!

 

 


Reinaldo Bulgarelli, sócio-diretor da Txai Consultoria e Educação, empresa que atua na área de sustentabilidade e responsabilidade social empresarial. [email protected]

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