A Academia Brasileira de Letras é uma instituição literária fundada no Rio de Janeiro em 1897 por nomes como Machado de Assis, Olavo Bilac, Afonso Celso e Joaquim Nabuco. Desde então, é composta por 40 membros efetivos e outros tantos perpétuos, os chamados imortais, mais vinte sócios estrangeiros. Uma das mais respeitadas e longevas concentrações […]
Do Meuestilo
A Academia Brasileira de Letras é uma instituição literária fundada no Rio de Janeiro em 1897 por nomes como Machado de Assis, Olavo Bilac, Afonso Celso e Joaquim Nabuco. Desde então, é composta por 40 membros efetivos e outros tantos perpétuos, os chamados imortais, mais vinte sócios estrangeiros.
Uma das mais respeitadas e longevas concentrações de intelectuais, a ABL ganhou vida apenas um ano antes da abolição da escravidão no Brasil em maio 1888. Apesar de ter sido fundada e presidida pelo negro Machado de Assis, a Academia Brasileira de Letras sempre foi um espaço de exclusão da intelectualidade negra, refletindo assim práticas ainda comuns de um país racista. Lima Barreto ouviu de Monteiro Lobato que não poderia fazer parte do clube porque era preto.
Os tempos avançaram e ao longo do século a intelectualidade negra, especialmente na literatura, se viu obrigada a traçar caminhos paralelos, muitas vezes mais árduos. Realidade retratada com fidelidade em Quarto de Despejo, escrito por Carolina Maria de Jesus, então moradora da favela do Canindé, em São Paulo, na década de 1960. Até hoje, considerado uma das principais criações literárias do Brasil.
Conceição Evaristo foi tema de exposições ao longo de 2017
Quem também enfrentou dificuldades parecidas para fazer valer o seu direito de escrever foi Conceição Evaristo. Nascida na década de 1940, numa favela de Belo Horizonte, a mineira é filha de uma lavadeira, tal como Carolina Maria, mantenedora de um diário para anotar as dificuldades de um cotidiano complicado.
Agora esta mulher negra, mãe e escritora que precisou conciliar o trabalho como empregada doméstica com os estudos, oficialmente pleiteia uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, podendo se tornar a primeira mulher negra do Brasil a atingir tal feito.
Eu quero entrar porque é um lugar nosso, porque temos direito.
Uma das autoras mais renomadas do país, Conceição, atualmente com 71 anos, ganhou projeção nacional e internacional muito tarde. Mas não o suficiente para impedir o levante literário negro impulsionado por nomes como o da própria Conceição, entre outras, como a também mineira Cidinha da Silva e a paulista Miriam Alves.
Para dissecar e analisar com a importância devida a possibilidade histórica do Brasil testemunhar a ocupação de uma mulher negra na ABL, o Hypeness conversou com duas figuras importantes da literatura brasileira, Ketty Valencio – formada em biblioteconomia e fundadora da Livraria Africanidades, totalmente dedicada aos escritos negros. E Lívia Natália, soteropolitana e uma das principais escritoras de sua geração.
É exatamente Ketty, mulher tão mais jovem do que Conceição, que aponta este período significativo da história brasileira e analisa os efeitos de lutas travadas durante o século 20.
“O nome que descrevo sobre isso seria ‘O Levante Literário’, momento crucial e bem importante para todos e todas nós. Fico extremamente empolgada pelo merecido reconhecimento pela obra destes autores e autoras. Lógico que ainda é pouco, pois queremos o céu e como diz a própria Conceição: ‘a exceção serve para pensar as regras’. No entanto, não podemos esquecer que este momento foi construído também pelas pessoas negras autores, intelectuais, produtores de cultura e militantes que vieram antes de nós e agora estamos colhendo alguns frutos, entretanto não podemos deixar morrer esta árvore e temos que plantar cada vez mais esta semente para a geração futura poder realizar uma grande colheita”, encerra.
“A escrita é nossa e ela nos pertence, a nossa oralidade está carregada disso”, Ketty Valencio
Como diria Conceição Evaristo, as ‘escrevivências’ vão se transformando e como um artista deve refletir o seu tempo, a escrita segue o mesmo caminho. No Brasil dos dias atuais ainda se debate muito os efeitos da segregação racial, porém é cada vez maior o número de escritoras e escritores determinados a falar de amor, de sentimentos. Agora, é sabido que a construção social da mulher e do homem negro foi calçada em pensamentos estereotipados e que flertam com a hiperssexualização. Sendo assim, falar de amor é um ato político?
“Sempre digo que o amor é a prova dos nove para as pessoas negras, Hooks, Davis, Audre Lorde, Carla Akotirene, Ana Cláudia Pacheco, enfim, um sem número de intelectuais negras se dedicaram a refletir sobre isso.
Falar de amor é um gesto de militância tão importante quanto qualquer outro simplesmente porque uma das coisas que o amor faz por nós é nos devolver a humanidade sequestrada pelo racismo.
Homens e mulheres negras são pensados como indivíduos animalizados e incapazes de gestos de afeto, as famílias negras tiveram que reinventar as suas noções de amor, assim como os casais negros. Estamos numa grande obra de reestruturação do amor, reinventando e entendendo o nosso afeto, os modos como o vivemos e o organizamos, e escrever sobre isso, esta mulher negra que sou, sempre pensada como forte, bonita, sensual, como muitas de nós é lida pelo racismo, ceder e falar sobre isto que me machuca, que me é interdito, foi um desafio. Enquanto escrevia eu aprendia sobre como o amor é para mim, e ainda é”, reflete Lívia Natália.
A presença de Conceição Evaristo no desempenho deste complexo papel é imprescindível. Com sua voz mansa, mas não submissa, ela abre caminhos e conquista novos leitores com uma poesia equilibrista. Amor e dor se entrelaçam nas páginas, contos e personagens de suas obras.
“Contrariamente ao que se imagina, nós negras e negros somos muito diferentes e criativos nas nossas vivências, o estereótipo racista minimiza as nossas divergências, mas somos sempre uma alteridade em relação ao outro. No caso, somos mulheres de gerações diferentes, isto impacta as nossas formas de compreender, viver e representar o amor na nossa literatura, mas, ao mesmo tempo, quando uma escritora negra constrói seu texto, ela representa esta coletividade divergente. Em Conceição o amor se dá nas dobras, nas mínimas sutilezas, ela verdadeiramente se preocupa em nos humanizar pelo afeto, talvez isso possa ser lido em sua intensidade dramática, mas esta plasticidade do afeto que ela constrói é, justamente, para sublinhar isto que somos ou que podemos ser. Para mim, é uma lição, um ensinamento amoroso”, pontua Lívia.
Lívia Natália é um dos principais nomes da nova safra de escritoras
Para a baiana, doutora pela Universidade Federal da Bahia e autora de títulos como Água Negra, em sua escrita o amor se dá de outras formas. “O amor é um laboratório. É entender, lentamente, quem é este ser amoroso, quem é este corpo afetivo, como isso se expressa no cotidiano. Acho que tento cotidianizar o amor, como ele é mesmo né? Construímos o amor nestas coisas insignificantes e, da mesma maneira, ele acaba. Sempre penso o amor como um mistério partilhado”.
Feminismo e visibilidade negra
Para pensadoras e pensadores negros, a possível indução de Conceição Evaristo na Academia Brasileira de Letras comprova a ebulição de um cenário de movimentação negra por meio da comunicação. Não importa a ferramenta, é cada vez maior o número de pessoas negras dividindo suas angústias, suas dores, mas também suas alegrias e preferências. O seu modo de ser. Neste barco, diferente de outros tempos, quem comanda são as mulheres. Cada vez mais presentes em espaços de lideranças, elas se apossam com direito do feminismo e do eco da voz de símbolos como Lélia Gonzalez, exigindo a interseccionalidade e o direito de expressão. O surgimento de nomes como a filósofa e também escritora Djamila Ribeiro e do Slam das Minas, são exemplos pertinentes.
A luta de mulheres negras é ampla, passa não apenas por questões objetivas de reivindicação de direitos no universo prático, mas se ancora, antes de tudo, na luta pelo respeito ao nosso lugar de fala e reconhecimento da necessidade de nossa representatividade que se expressa pela nossa participação nos lugares-chave, como a ABL.
Na candidatura de Conceição Evaristo, e em toda a campanha mobilizada, estão a militância histórica do movimento negro brasileiro, mas, assentando esta luta, estão as vozes de mulheres negras de todas as idades que compreenderam que ter uma de nós neste espaço de privilégio branco, rasurando e incomodando este lugar pensado como sendo inadequado ou inviável para nós. Ou seja, ouve-se, veementemente, a voz das mulheres negras feministas”, analisa Lívia Natália.
Para Ketty Valencio, a influência de Conceição está no ímpeto de fazer com que “nós pessoas negras, principalmente as mulheres negras descobrirem as nossas próprias vozes, por meio de nossas histórias e/ou também de outras narrativas pretas para ecoarem por aí e consequentemente diminuir e/ou dizimar a sensação de estrangeirismo e individualidade que nos abarca constantemente”.
Este processo de descobrimento passa pelo acesso à educação, especialmente ao ensino superior. Daí a importância das ações afirmativas para a proliferação de vozes inspiradas no canto de Conceição Evaristo. Há 10 anos o acesso de negros às universidades foi facilitado por meio das chamadas cotas raciais. Levando em consideração a dívida de um país forjado pela escravidão e os efeitos deste período de quatro séculos na vida das gerações e claro, da luta de membros de movimentos negros ao longo dos anos, a medida transformou o debate sobre negritude no Brasil.
“As ações são essenciais, um grande facilitador, por outro lado temos que monitorar, entender e usufruir este processo.
Usar as políticas públicas com eficácia é uma das formas de fortalecer o coletivo e também o individual para a promoção da sonhada equidade.
Facilitar o ingresso e a permanência de corpos considerados subalternos em todos os espaços, como as cotas nas universidades, no serviço público e em grandes empresas privadas, em bolsas científicas, na criação de uma política de valorização identitária. No entanto estas ações usam algo que a militância negra fez durante muito tempo, a criação de novos caminhos e possibilidades. Por isso todos os fatores citados acima beneficiam na construção de uma intelectual negra, de termos negros e negras em todos os lugares, principalmente em locais que são considerados inesperados. Contudo sabemos que ação afirmativa é algo temporário e por isso temos que construirmos outros instrumentos para não haver o retrocesso”, chama a atenção Ketty Valencio, formada em biblioteconomia.
Segundo dados do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE), em 2005 apenas 5,5% dos jovens negros de 18 a 24 anos estavam matriculados. Em 2015, 12,8% dos pretos na mesma faixa etária estavam no nível superior. Com isso está aberta a porta para a criação de coletivos, de debates, de conteúdo intelectual não só sobre o período da escravidão, mas sobre as resistências, as invenções, enfim, está colocado o espaço para investir e difundir a auto-estima negra e tomar conhecimento da obra de figuras como Sueli Carneiro e a própria Conceição Evaristo.
Conceição sedimenta os caminhos de uma nova intelectualidade negra
“Meu acesso a Conceição Evaristo foi curioso. Comecei uma leitura sistemática de Literatura Negra por volta de 2007, já terminando o doutorado, e este, além da ignorância e desinteresse dos professores pelo assunto, é um dos motivos de eu não ter estudado tal literatura na pós-graduação. Quando, finalmente, li, iniciou-se uma busca voraz. Por outros autores e autoras, comprei tudo o que podia de Cadernos Negros até que cheguei a Ponciá Vicêncio. Em 2010, houve um evento em Brasília sobre mulher e literatura com ênfase na escrita de mulheres negras para o qual fui como uma teleguiada, sem trabalho algum para apresentar, eu fui assistir e conhecer. E ali conheci Dona Geni Guimarães, Lia Vieira, Miriam Alves, Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro…enfim, até hoje tenho a recordação destes encontros em fotos. Dali, viver destas mulheres, com elas, lendo-as e amando-as, tornou-se prioritário para mim. E, hoje, ser amiga pessoal da maioria delas é algo que me honra e alegra. Hoje, conduzo estudos de quase 20 pesquisadores de graduação e pós-graduação sobre os seus escritos”, ressalta Lívia Natália, demonstrando a potência da educação.
Outro aspecto significativo das ações afirmativas, neste caso especificamente da trajetória de Conceição Evaristo é a proliferação de clubes de leitura e até mesmo a criação de livrarias e espaços de debate. Falamos aqui no Hypeness sobre a Katuka Africanidades, em Salvador, que une moda e livros, mas o público de São Paulo também pode se nutrir de conhecimento na Livraria Africanidades.
Com ela, eu aprendi que a literatura pode ser acalanto e nos levar de volta para a casa. Desse jeito tento proporcionar a mesma sensação para todas as pessoas, através do meu papel de mediadora. A Conceição escreve uma literatura para todos e todas nós, independentemente do seu grau de instrução, território e gênero, além dela valorizar sua própria voz e seus e as suas, que são a maioria da população brasileira, mediante do protagonismo de corpos negros
que está bem evidente na sua produção literária. A missão no meu trabalho é baseada nisso, de nós pessoas negras, principalmente as mulheres negras descobrirem as nossas próprias vozes, por meio de nossas histórias e também de outras narrativas pretas para ecoarem por aí e consequentemente diminuir ou dizimar a sensação de estrangeirismo e individualidade que nos abarca constantemente.
Constantemente as pessoas questionam a existência da livraria, da importância de ter um
local que segmenta uma literatura que é brasileira, que intersecciona pela etnia e gênero. No entanto aprendemos com muito sangue a ressignificar ações e palavras, para ser usado como arma. Como não somos e também as nossas pautas não são consideradas universais, a especificidade pode ser uma grande aliada para a busca da nossa libertação”, pontua Ketty Valencio, fundadora da Livraria Africanidades.
Citando Olhos D’água, vencedor do Prêmio Jabuti, como seu livro favorito, Lívia diz que ele “me fez chorar muitas vezes”. Para Ketty, a literatura é exatamente isso, “emancipadora, mágica e acolhedora. Ela cria e transforma caminhos e pessoas. Cada pessoa tem a possibilidade de embarcar e escolher a sua viagem, portanto ela é democrática ou deveria ser, ou seja, ela também é uma ferramenta política. Por tanto tempo, nós pessoas negras, fomos impossibilitadas e também acreditamos que não poderíamos produzir ou ler esta tal literatura, infelizmente ainda temos algumas pessoas que continuam acreditando nessa falácia. A escrita é nossa e ela nos pertence, a nossa oralidade está carregada disso, por isso a nossa ancestralidade é dona do saber”.
Que a presença de Conceição Evaristo na ABL, como a mesma disse, um direito, se concretize e sirva para plantar ainda mais sementes neste caminho de afirmação e consolidação do que significa ser negro no Brasil. O rap, o livro, a música, a educação e a cultura, são estes os caminhos para muitas vidas serem salvas.
“Conduzo estudos de quase 20 pesquisadores de graduação e pós-graduação sobre os seus escritos”, Lívia
Para terminar e pegando carona na divulgação do que seria a última fotografia de Machado de Assis, nada mais pertinente do que uma carta escrita por Conceição Evaristo e endereçada ao mestre da literatura brasileira.
Carta ao Machado de Assis por Conceição Evaristo:
“Estimado Joaquim Maria Machado de Assis,
No momento em que escrevo esta missiva a Academia Brasileira de Letras está a menos de um mês de completar 121 anos. O tempo passou muito rápido, não é mesmo? A ABL foi inaugurada apenas nove anos depois da libertação dos escravizados, no dia 20 de julho de 1897, inspirada na instituição que lhe era análoga na França — que existe desde o século 17 — e teve a ti como primeiro presidente. Foi outro dia que estavas ali, discretamente posicionado na cena das comemorações da abolição da escravatura. Demoramos, mas o achamos na foto. Logo tu (me permita tratá-lo com esta intimidade, pois és figura de minha profunda estima e consideração desde os tempos em que a escola determinava que eu lesse o que escreveste quando eu era ainda muito jovem), caro Machado, um homem negro nascido no morro do Livramento. Se soubesses como andam as comunidades cariocas nos tempos de hoje… Nem te conto! Imagino vossas crônicas se vivesses neste futuro não sonhado, mas este é assunto para outra hora, pois agora quero dizer-lhe que relembrei esses fatos porque nesta segunda década do século 21, ilustríssimo Joaquim, ainda contam-se nos dedos os que como tu são afro-brasileiros e ocuparam ou ocupam uma cadeira na Academia por ti tão amada.
Pois sim, Machado, pois não… No lugar iluminado em que certamente estás ouviste comentários sobre a escritora Conceição Evaristo. Uma senhora distintíssima. Professora, doutora em literatura, premiada e aclamada aqui e em terras estrangeiras. Não posso ler Olhos d’água sem que me emocione até às lágrimas em diversos trechos. Isso apenas para mencionar o texto mais famoso da autora mineira, ganhador de um dos principais prêmios literários do país. Imagino o que não terão dito dela Maria Firmina dos Reis, nossa primeira romancista negra, ou a brilhante Carolina Maria de Jesus nos chás que devem tomar por aí.
A boa notícia, querido Bruxo do Cosme Velho, é que o talento dela é tanto, mas tanto, que motivou uma campanha para que ocupe um lugar na tua ABL que, enquanto converso aqui contigo, já passa de 22.230 pessoas. Sim, sei que na tua época isso era uma multidão, visto que o Rio tinha por volta de 522 mil habitantes apenas, mas é muita gente ainda hoje. Nestes tempos em que as redes sociais e outros veículos parecem suplantar os livros no interesse da população. A nossa escritora atendeu ao apelo e se candidatou à cadeira 39, recentemente deixada por Nelson Pereira dos Santos para se juntar a vocês.
A notícia complicada é que, assim diz a imprensa, alguns dos teus pares na Academia enxergam isso como “pressão” ou “intimidação”. Que massada! Sabes o que mais, caro Assis? Concordo com eles. Sim, existe uma parcela muito grande da população brasileira — e me encontro nela — que não suporta não se ver nos principais espaços de poder de nossa sociedade. Existe uma multidão incrivelmente maior do que a população carioca dos vossos tempos que clama por ver reconhecido o talento e a capacidade dos seus. Somos 54% de uma população nacional que já passou dos 200 milhões. Eu te disse que era muita gente! Conto-te que, apesar dos números, o maior sucesso das principais instituições brasileiras neste meio milênio e dezoito anos é deixar-nos de fora de seu apertado círculo de mandatários ou com uma sub-representação de exceções que justificam a regra excludente.
Li o teu discurso de abertura da ABL, em julho de 1897. Não foi longo, mas preciso. Nele falas de tradição e de solidez, mas acenas para o futuro. Destaco uns trechos: “…a Academia nasce com a alma nova, naturalmente ambiciosa. (…) A Academia Francesa, pela qual esta se modelou, sobrevive aos acontecimentos de toda casta, às escolas literárias e às transformações civis. A vossa há de querer ter as mesmas feições de estabilidade e progresso”.
Pergunto-te, Machado: o que seria mais ousado e ambicioso do que ver a potência brasileira de múltiplas vozes verdadeiramente representada nos ocupantes da Academia? O que poderia dar mais solidez a tal instituição do que ter este enorme e plural povo em suas fileiras, finalmente fazendo jus àquele anseio de liberdade que o levou aos festejos da abolição? Tudo isso sem prejuízo à independência que lhe é tão cara, pois sabemos que a ABL é um instituição privada e tem a liberdade de decisões como um valor a ser preservado, mas se ela tem por fim o que está em seu estatuto, ou seja, “a cultura da língua e da literatura nacional”; se levam realmente a sério o que disseste em teu discurso aos novos membros — “… que vossa obra seja contada entre as sólidas e brilhantes páginas da nossa vida brasileira” — mais uma vez te pergunto: Como estamos de fora há tanto tempo dessas páginas como autores ou personagens protagonistas? O clamor vem daí, meu caro.
Outras questões me intrigam. Está bem que sabemos que, a exemplo da irmã mais velha da França e outras pelo mundo, embora leve “letras” no seu nome, não necessariamente um membro precisa ser escritor desde que seja notável em sua área de atuação. Tu sabes o que o Brasil tem passado nos últimos 120 anos. Tu sabes que a casa que fundaste junto a tantos brilhantes intelectuais sobreviveu aos golpes sofridos pela nação e as tentativas de usos os mais variados, mas não sem ceder aqui e acolá, concordas? Se assim não fosse, que cousa justificaria entre os imortais alguns nomes tão ligados a governos e outros poderes e menos às artes? E se assim é por que classificar como uma pressão negativa esta que faz a população agora?
Como vês, estou cheia de indagações, mas tenho uma certeza. Não queremos apenas figurar em foto nas paredes da casa imponente na Avenida Presidente Wilson, no centro do Rio de Janeiro das tuas memoráveis crônicas, contos e romances. Queremos ver nosso fazer literário também imortalizado nas “brilhantes páginas da nossa vida brasileira”, visto que a ABL funciona como um ambiente de trocas intelectuais, realizando conferências, publicações, editando o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e atuando como referência das letras nacionais para o planeta. Pergunte ao Lima Barreto, que deve andar por aí, o que significou para ele ter sido seguidamente preterido neste espaço. Muito lindas todas as homenagens feitas a ele recentemente, mas não teria sido justo, além de supimpa, o seu reconhecimento em vida?
Por fim digo que temos o maior orgulho de tê-lo como um gênio mundialmente reconhecido e comparável aos maiores da humanidade. Lamentamos que tenham tentado retirá-lo do nosso pertencimento com seguidas maquiagens de embranquecimento, nos retratos que nos chegam aqui no século XXI. Eu mesma guardo uma nota de dinheiro de umas três décadas atrás em que tua imagem mais parece a de qualquer barão do açúcar ou do café. Os abolicionistas Joaquim Nabuco e José do Patrocínio estavam junto contigo no grupo dos primeiros membros da Academia Brasileira de Letras, logo, a mim me parece uma loucura cansativa ainda estarmos falando de tais coisas a esta altura da vida nacional. No entanto, como não falar se tantos temos e tivemos e que lá mereciam estar? Martinho da Vila, Muniz Sodré, Salgado Maranhão, Nei Lopes… só para citar uns poucos.
Sigo tendo fé. Muito caminhamos, embora ainda falte bastante. Como disseste na obra prima Memórias póstumas de Brás Cubas: “A pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas”. Aos que se detêm à margem do rio sem perceber que já é tempo, digo que as águas nos trazem a força de nossa rica história e ao mesmo tempo elas nos conduzem à belíssima e relevante obra de Conceição Evaristo.
Caso possas inspirar algumas mentes desde o mundo dos ancestrais, humildemente te peço que o faça. Fico tentada a pedir que reveles aquele famoso segredo que há tanto tempo nos intriga, mas se resolveres por responder a esta singela mensagem, não me digas se Capitu traiu ou não o Bentinho. É uma delícia não saber.
Um forte abraço,
Conceição Evaristo”.
É dever da ABL ceder o espaço de direito de Conceição Evaristo