Carta à Glória Anzaldúa

Glória, recebi sua carta e apesar do avançar da hora…do tempo

pretendo encontrá-la nas entrelinhas, nas lacunas que deixou em mim

Me comprometo a não ficar na caixa. 

Não, os meus braços de shiva não ficarão presos sem ação alguma. 

Gritaram-me mulata e por  muito tempo odiei o que via

Gritaram-me novamente e antes que terminassem a fala

 eu disse: NEGRA, é isso que sou. É assim que me vejo. 

Se mestiças , somos lidas como meio mulheres, meio humanas 

Somos meio caminho? E se estivermos na encruzilhada? 

Para eles esta localização de trincheira, nos parte ao meio e faz de nós o nada

Meio acadêmicas, meio capazes, meio chicanas, meio ciganas, meio peregrinas

Meio e meio nunca é o inteiro para aqueles que insistem em nos limitar, nos margear

Conceição Evaristo já dizia que nossas escritas não são para ninar os da casa grande

Quero te agradecer pela rebeldia e lucidez em continuar chicana da escrita

Querem falar sobre nós , sem vestir nossas roupas

sem beber de nossa lágrima salgada de tanto caminhar a pé sob o sol, 

sem manusear nosso arado.

Não precisamos de falsos intérpretes , falamos em línguas

Ainda estamos aqui a escrever e dizer sobre NÓS

Colar o sangue no papel… em conversa com Evaristo entendi

escrever é uma forma de sangrar. 

Eu me comprometo nepantla, vou transitar entre espaços conflituosos

Atravessar e vê o que está do outro lado

Permanecer inconclusiva, indeterminada, em construção 

Se Elza Soares estivesse aqui ,diria que você é uma

 mulher do fim do mundo… elevando sua categoria rebelde1.


  1.  Carta escrita para Glória Anzaldúa, apresentada em trabalho da disciplina: “Feminismos negros”, ministrada pela Professora Paula Gonzaga, onde o livro da autora: “A vulva é uma ferida aberta”, foi analisado pela discente.  ↩︎

Arleam Dias, mulher negra, de Belo Horizonte/MG. Advogada. Mestra em Psicologia Social pela UFMG. Pesquisa gênero, raça, classe e políticas de escrita, a partir de escrevivências de mulheres negras. Voluntária em comissões da OABMG desde 2016 e Conselheira Seccional. Autora do Livro Entre edemas, pandemias e poemas; Poemas da Janela; organizadora e coautora de Salutar- o imperativo das vozes negras femininas, entre outras obras.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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