Carta aberta à professora Alba Zaluar

Foto: Pilar Olivares/Reuters

Por Maria Isabel Couto, do ESCUTA

Prezada professora Alba Zaluar,

É com tristeza que escrevo esta carta pública em resposta a sua recente entrevista à Folha de São Paulo, no dia 21 de março de 2018. Não há como negar a importância das suas pesquisas para o campo de estudos sociológicos de favela e violência. Quantos de nós, cientistas sociais estudiosos destas temáticas, passaram sem ler “A Máquina e a Revolta” ou “Um Século de Favela”? Imagino que poucos. É justamente por essa influência que a senhora exerceu na formação de muitos de nós, que gostaria de tecer aqui alguns comentários sobre a sua entrevista.

No próprio dia 21, vi na minha linha do tempo do Facebook que uma liderança de juventude de favelas, a quem admiro enormemente, se questionava do mote em manifestações <<não acabou, tem que acabar, eu quero o fim da polícia militar>>, justamente em razão da sua entrevista. Nesta, a senhora classifica essa luta como uma “bandeira horrível” e “estúpida”, porque supostamente deixaria 40 mil policiais desempregados.

Sinceramente, professora, após décadas de pesquisas na área de segurança pública e violência, a senhora não conseguiu entender que o clamor pelo fim da PM não é sequer contra policiais? O que estávamos pedindo nas ruas, e não é de hoje, é para que se acabe com a militarização das nossas vidas, e especialmente para que cesse a militarização da vida das populações pobres, negras e periféricas. E isso, tenho certeza de que a senhora bem sabe, não se termina com reformas, nem significa que milhares de pessoas vão ficar desempregadas.

Desmilitarizar a PM significa mudar nossa Constituição e a forma como encaramos a segurança pública. Significa superar a visão de determinadas parcelas da nossa população como inimigos internos e de assumir de vez a prioridade da vida. Esta profunda transformação do Brasil é inclusive bem recebida por parte considerável da PM, como demonstrado em pesquisas de opinião recentes. Porque muitos deles também sabem, professora, que uma das consequências da militarização é a morte dos mesmos.

Então, professora, quando clamamos pelo “fim da polícia militar” não é necessariamente pelo fim da polícia – mesmo que tenha certeza de que parte dos colegas, legitimamente, quer sim a existência de um mundo sem polícia. É pelo fim do militarismo, que após décadas de existência apenas nos transformou em uma das sociedade que mais mata – e consequentemente mais morre – no mundo. Então, por favor, te peço, não deturpe nossas palavras e nossos clamores.

Gostaria muito de dizer que este é o único ponto da carta que me sinto compelida a responder. Mas infelizmente não o é. Na entrevista, a senhora cai na falácia de que defensores de direitos humanos são defensores de “bandidos” ao dizer que a sociedade “aceita meninos com fuzil na mão” e que os defensores de direitos humanos os vitimizam. Ora, professora, como a senhora explica então os ativistas de favelas ameaçados de morte pelo tráfico? Como explica mais de três décadas de eleições nas quais os candidatos com as propostas mais truculentas – pautados pela “guerra às drogas” e/ou até mesmo financiados pela milícia – vencem? É no mínimo simplista afirmar que nós aceitamos tudo isso e há uma bibliografia extensa tratando dessa questão. Sugiro fortemente o livro “Vida sob Cerco”, produzido por vários colegas nossos, como a mais brilhante resposta a essa indagação.

Agora, com relação à acusação de que nós exigimos muito do Estado e ele não conseguirá prover tudo, aí sim, isso é em parte verdade. Muitos de nós não acreditam em Estado mínimo e não estão satisfeitos com um Estado cada vez mais fraco quanto a provisão de bens sociais, e mais forte em relação ao controle social. No entanto, no que diz respeito à violência, é preciso ser dito que exigimos muito do Estado e não dos traficantes porque não alçamos traficantes a um poder legítimo. Como cobrar a pessoas que estão à margem da lei, que cumpram a lei? Isso deveria ser óbvio. O Estado é quem tem a legitimidade e a responsabilidade de garantir a nossa segurança e não deixaremos de cobrá-lo por isso. Quando flexibilizamos tal questão, nos momentos em que aceitamos e legitimamos a quebra do monopólio da força do Estado, vimos surgir e se fortalecer fenômenos como as milícias e o Primeiro Comando da Capital. Parece-me que piora, não?

Por fim, e sem mais delongas, um último ponto me incomodou a ponto de ser o que realmente me mobilizou a escrever essa carta. Dentre as “bandeiras horríveis”, que segundo a senhora foram colocadas na manifestação, sua entrevista cita a seguinte: <<por Marielle, eu digo não, eu digo não à intervenção>>. A senhora ainda diz que tal bandeira deve ter sido colocada pelo PSOL, “que é contra e ponto”. Ora professora, gostaria que a senhora adotasse o seu próprio discurso e não nos vitimizasse. Nós, que estamos na rua, não somos crianças, não somos manipuláveis e não precisamos que membros da torre de marfim, nem da imprensa tradicional, venham nos iluminar. Inclusive, ao contrário da senhora, somos capazes de identificar que a intervenção já fez bastante de errado, já nasceu errada.

Nós somos sim contra a intervenção. Não sei se todos os que estão nas ruas por Marielle, mas certamente sua maioria, incluindo a mim. Somos contra porque o “saqueamento” coletivo que ocorreu na Vila Kennedy é inaceitável. Somos contra porque voltar a prender pessoas na carceragem de delegacias por crimes de desacato é inaceitável. Somos contra porque não aceitamos tanques de guerra nas ruas. Somos contra porque não aceitamos generais de volta no comando dos nossos destinos. Somos contra porque a estratégia eleitoreira de Temer para esconder a derrota bilionária da reforma da previdência não nos engana. Somos contra porque sabemos qual sangue continuará a escorrer com o aprofundamento da militarização da vida cotidiana: o pobre, negro e periférico. Mas você não acredita em racismo institucional. Quase me esqueço. E gritamos contra a intervenção nas ruas das últimas semanas porque Marielle era contra, como nós, e não porque o PSOL mandou. Marielle era mais que o PSOL, Marielle era pura força, legitimidade e representação. Então não nos infantilize, não tente escamotear a nossa dor e a nossa luta. A luta, inclusive, a senhora já infantiliza desde 2013, momento histórico que teima em desmerecer.

Termino esta carta, professora, afirmando que a sua entrevista muito me decepcionou, mas não me surpreendeu. Independentemente dos posicionamentos políticos, espero sempre das pessoas, especialmente das minhas colegas, um tratamento honesto. A senhora não nos retratou com honestidade nessa entrevista. Imputou em nós conclusões que já carrega há muito tempo, e de maneira bastante simplista. Só que dessa vez é diferente, porque <<quem mexeu com Marielle, atiçou o formigueiro>>. Então, quando quiser, volte às ruas, venha nos ouvir. Mas venha de coração aberto, converse conosco, tente nos entender. Tenho certeza de que descobrirá que somos mais complexas e abertas ao diálogo do que a senhora concluiu nesta triste entrevista.

Cordialmente,

Maria Isabel Couto

* Maria Isabel Couto é doutora em sociologia pelo IESP/UERJ e colaboradora da Escuta.

+ sobre o tema

Pobre Palmares!

  por Arísia Barros União,a terra de Zumbi, faz parcas e...

“Somos índios, resistimos há 500 anos. Fico preocupado é se os brancos vão resistir”

Há 30 anos, em plena Assembleia Constituinte, pintou o...

Lei 13.019: um novo capítulo na história da democracia brasileira

Nota pública da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais...

para lembrar

Número de mulheres eleitas prefeitas no 1º turno aumenta 31,5% no país

Candidatas alcançaram posto em 663 cidades, mas apenas uma...

Em prédio novo, escola de SP não possui itens básicos para estudar.

Prédio novo também continha sobras de material de construção...

Jessé Souza: “A verdadeira corrupção é a do mercado”

Em setembro, o sociólogo lança novo livro em que...

Mano Brown e Iceblue gravam com Fernando Haddad

por Walber Silva O candidato a prefeitura de São...

Fim da saída temporária apenas favorece facções

Relatado por Flávio Bolsonaro (PL-RJ), o Senado Federal aprovou projeto de lei que põe fim à saída temporária de presos em datas comemorativas. O líder do governo na Casa, Jaques Wagner (PT-BA),...

Morre o político Luiz Alberto, sem ver o PT priorizar o combate ao racismo

Morreu na manhã desta quarta (13) o ex-deputado federal Luiz Alberto (PT-BA), 70. Ele teve um infarto. Passou mal na madrugada e chegou a ser...

Equidade só na rampa

Quando o secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Cappelli, perguntou "quem indica o procurador-geral da República? (...) O povo, através do seu...
-+=