Cartas de Mandela embaralham formação de líder com anseios do homem comum

Uma pessoa comum que passasse 27 anos presa por suas posições político-sociais sairia do cárcere como um poço de ódio aos captores e tomada por um desejo de vingança.

Mas Nelson Rolihlahla Mandela não foi um homem comum. O Mandela que emerge do livro “Cartas da Prisão de Nelson Mandela” é o protótipo do estadista, o último do século 20, que se materializaria uma vez libertado.

Foi o principal personagem para que a África do Sul deixasse de ser a terra do apartheid para se transformar em uma democracia multirracial, graças a seu empenho em fazer da negociação um enorme instrumento de ação política.

É razoável atribuir a esse empenho o fato de que a África do Sul seja uma rara democracia em um continente manchado por ditadores e pela eternização no poder. Mandela, ao contrário, cumpriu o seu mandato presidencial e foi para casa.

A “sua” África do Sul conseguiu ainda escapar das guerras tribais que ensanguentaram boa parte do continente após as independências.

É lógico considerar que o estadista foi moldado na prisão: afinal, recorda o livro, “entrou como um homem de 44 anos, pai de cinco filhos, e saiu como um avô de 71”.

Do que é feito um estadista moldado na cadeia? De “esperança e expectativa”, responde o próprio, em carta a Winnie, sua mulher, em agosto de 1970 (20 anos antes da libertação).

A esperança é tamanha que ele escreve o que poderia ser tomado como premonição:

“Um dia, talvez tenhamos ao nosso lado o apoio genuíno e firme de um homem íntegro e franco, ocupante de alta posição, que considere impróprio furtar-se a seu dever de proteger os direitos e privilégios até mesmo de seus mais ferrenhos oponentes […]”.

Passaram-se 19 anos, mas esse homem finalmente apareceu, na figura de Frederik Willem de Klerk, que assumiu a Presidência em setembro de 1989. Preso, Mandela começou a negociar com De Klerk o processo de transição.

Para que a negociação fosse bem-sucedida, facilitou o fato de Mandela, na prisão, ter aprendido o africâner, a língua dos brancos.

Relata o livro: “Mandela estudou a língua […] em busca de um melhor conhecimento da história e da cultura do Partido Nacional governante e de seus seguidores. Acreditava que isso o ajudaria a comunicar-se de maneira mais eficaz com o inimigo”.

Ajudou de fato, não só com o inimigo da época, mas, depois, com os parceiros da normalização —o que contribuiu para que ele e De Klerk ganhassem o Nobel da Paz em 1993.

Mas o Mandela das cartas da prisão não é apenas o militante político, mas também o advogado, o pai, o marido, o tio e o amigo.

Como a correspondência de prisioneiros é censurada, é natural que as cartas agora recolhidas tenham mais referências familiares do que propriamente políticas. São contínuas suas queixas sobre a impossibilidade de ter contato com a mulher, os filhos, a mãe.

Mas há, sim, uma carta que é o mais completo manifesto político do CNA, o grupo que Mandela liderava mesmo preso e que assumiu o governo na nova África do Sul e nele permanece até hoje.

Em fevereiro de 1990, ele encaminha ao comissário das Prisões resolução do Comitê Executivo do CNA. Nela, seu espírito conciliador é posto em letra de forma, ao manifestar “a preferência do CNA por um arranjo obtido por meios políticos”, “fundamental para a natureza do CNA como movimento que busca a democracia, a justiça e a paz para todos”.

Mandela termina a carta com a observação de que “a declaração não contém referência alguma à violência”. A dias de ser liberado, completava sua educação política.

CARTAS DA PRISÃO DE NELSON MANDELA

  • Preço R$ 59,90
  • Autor Sahm Venter (edição), tradução de José Geraldo Couto
  • Editora Todavia (648 págs.)

Vida de Mandela

1918 Nasce na localidade de Mvezo, na atual província do Cabo Oriental

1944 Ingressa no Congresso Nacional Africano (CNA)

1952 É processado de acordo com a Lei para Supressão do Comunismo, do governo de apartheid sul-africano. Recebe sentença de prisão, depois suspensa

1962 Deixa o país secretamente e recebe treinamento militar na Argélia. De volta ao país, é condenado a cinco anos por incitar revoltas

1964 Condenado à prisão perpétua, escapando por pouco da pena de morte

1985 Rejeita a oferta de Pieter Botha, então presidente da África do Sul, de ser libertado em troca de renunciar à violência

1990 Libertado da prisão. No mesmo ano, Frederik de Klerk, o último presidente branco do país, acaba com a proibição do CNA, que teve início em 1960

1993 Ganha o Prêmio Nobel da Paz junto com De Klerk

1994 É eleito o primeiro presidente negro da África do Sul

2013 Morre aos 95 anos em Joanesburgo

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