Ex-escrava eternizada em filme e novela agora é retratada em espetáculo de dança
Não faz uma semana, Zezé Motta entrou num salão de beleza para cuidar das unhas e, de cara, ouviu a frase: “Aprendi tudo com você!”, disparou uma voz feminina. A cliente se referia às acrobacias sexuais de Xica da Silva, personagem histórica que a atriz eternizou no imaginário de mulheres (e homens) Brasil afora. A longevidade da relação com o marido era atribuída aos ensinamentos da escrava que virou rainha, nas Minas Gerais do século XVIII. Aos 70 anos, Zezé já perdeu a conta da quantidade de mulheres que agradecem por Xica. Duas décadas atrás, durante um laboratório na Vila Mimosa para o filme “A grande arte”, uma prostituta segredou que devia à personagem a casa bem equipada que montara.
— Ela disse: “Tudo o que tenho devo a você”. É isso. A Xica tem esse poder — resume a atriz.
Quase 40 anos após o lançamento do longa de Cacá Diegues, o inventário de certezas espanta, porque a obra nada mostrava. No máximo sugeria, com imagens bucólicas sonorizadas pelos gritos de prazer de João Fernandes de Oliveira, o contratador de diamantes e companheiro de Xica, encarnado pelo inesquecível Walmor Chagas. Naquele 1976, em plena ditadura militar, nascia o mito a que o Brasil fora apresentado 13 anos antes, quando Salgueiro ganhou o carnaval com “Xica da Silva”. O enredo de Arlindo Rodrigues sobre a Cinderela Negra do arraial do Tejuco, hoje Diamantina, encantou o cineasta e levou ao longa.
A figura erotizada do cinema desagradou ao movimento negro na época, mas resistiu. Fora concebida nos anos 1860, pré-abolição da escravatura, pelos relatos do advogado Joaquim Felício dos Santos, publicados em jornal e, mais tarde, no livro “Memórias do distrito Diamantina”. Em 1996, a extinta TV Manchete estreou a novela “Xica da Silva”, com Taís Araújo, então com 17 anos, no papel-título. O apelo sexual foi mantido, a ponto de uma campanha publicitária ter sido criada para inaugurar as cenas de nudez, liberadas a partir da maioridade da atriz.
— Havia essa carga de sensualidade, mas a Xica era muito mais. Era política, inteligente, articuladora. Isso veio em mim aos poucos. Na época, eu era uma menina — lembra Taís.
É a dimensão única, sexualizada, dessa mulher negra que a coreógrafa Carmen Luz sonha desconstruir com a estreia, hoje à noite, no Rio (Teatro Cacilda Becker), do espetáculo “Chica”, que comemora os 21 anos de sua Cia. Étnica de Dança. Há uma década, Carmen estuda a figura de Francisca da Silva de Oliveira, reinterpretada pela historiadora Júnia Ferreira Furtado em “Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito”, de 2003. O livro sobre a figura (na vida real com “Ch” e na ficção com “X”) é baseado em pesquisas feitas em Diamantina, Belo Horizonte, Macaúbas, Mariana, Rio de Janeiro e até em Portugal, para onde João Fernandes retornou, em fins do século XVIII, levando os quatro filhos homens que teve com Chica. O casal viveu junto por 17 anos e teve 13 filhos. Sozinha, Chica, que só morreu em 1796, criou as meninas e administrou os bens herdados do contratador, num cotidiano mesclado de opulência financeira e preconceito racial.
A fagulha que detonou a produção do espetáculo foi um trote racista no curso de Direito da UFMG, em 2013. Uma jovem com o corpo pintado de preto e mãos atadas circulou acorrentada pela universidade, com um cartaz no pescoço escrito “Caloura Chica da Silva”. Foi a senha para Carmen Luz decidir interferir no mito calcado nos estereótipos do século XIX. O elenco encarna os papéis de companheira, mãe e provedora da ex-escrava, relacionando-os às mulheres brasileiras do século XXI.
— Positivamente, o Brasil lembra da Chica pela beleza de Zezé e pela graça de Taís, mas o dia a dia das mulheres, negras e brancas, ainda é repleto de discriminação. Toda mulher no Brasil é meio Chica da Silva. É sexualizada, esculachada e, ao mesmo tempo, ousada, forte, batalhadora, produtiva — enumera a diretora.
O GLOBO reuniu as três faces de Chica da Silva segunda-feira à noite, no apartamento de Zezé Motta, no Leme, onde viveu a escritora Clarice Lispector. As três falam da escrava alforriada que se tornou primeira-dama do Tejuco, com respeito e gratidão. Chica se destacou pelo marido, mas não foi a única negra ou mulata da região a viver maritalmente com portugueses brancos. A História oficial deixou de registrar o tanto que a sociedade mineradora dos anos 1700 era povoada de casais interraciais.
NEGRA NO PAPEL DE RAINHA
O papel de rainha na ficção foi o que mais assustou Zezé. Ela lembra de ter desabafado com o amigo, já falecido, Carlos Prieto, ator, figurinista e maquiador. E recomendou que a atriz vestisse o figurino de época, fez uma maquiagem carregada de dourado e ordenou: “Seja maior que essa roupa, essa maquiagem e essa peruca”, conta Zezé:
— Depois do convite do Cacá, me dei conta de que só sabia fazer a escrava. Já tinha feito várias. O que não sabia, nem na vida nem na arte, era ser rainha. Por isso, digo que minha vida é dividida entre antes e depois de Xica. Ela me fez popular e me deu independência.
Taís, nascida e criada numa família de classe média da Barra da Tijuca, tinha mais intimidade com a vida confortável de Chica. Mas não passou imune pela personagem. De cara, afirma que a Imperatriz do Tejuco foi determinante na escolha da profissão. Ela já atuara anteriormente, mas o papel de protagonista a fez desistir da carreira de diplomata.
— Tive a grande sorte de Xica da Silva ter vindo para mim de mãos dadas com Walter Avancini — resume.
Foi o diretor, já morto, que provocou a atriz numa das cenas mais simbólicas da novela, a que Xica adentraria o baile da elite local. Avancini se aproximou de Taís e sussurrou: “Ninguém nesse lugar quer que você esteja aqui. Eles odeiam você, desejam o seu lugar. Como vai reagir? Você vai ter de provar que o lugar é seu”. A interpretação veio forte. E ainda hoje a atriz se pergunta se o comentário foi dirigido a ela própria, jovem protagonista negra, ou à personagem.
Carmen não cita qualquer figura masculina marcante na construção das Chicas que vai levar ao palco de hoje até o fim do mês. Mas lembra do questionamento das jovens dançarinas sobre a carga erótica excessiva da personagem do filme de Cacá. É para elas — e para o dançarino que encarna a Chica transexual no espetáculo — que serão exibidas todas as nuances desse eterno mito feminino brasileiro.
Foto: Pedro Kirilos
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