Na última quinta-feira (2), Geledés – Instituto da Mulher Negra promoveu um encontro para debater a importância de disseminar o pensamento de Beatriz Nascimento, uma das intelectuais mais relevantes das Américas. Sua pesquisa buscou construir uma narrativa sobre a população negra que tivesse como horizonte a libertação.
Durante a atividade, a professora Christen instigou o público a refletir sobre o atual momento político e a condição da população negra. Retomando as contribuições de Beatriz Nascimento, destacou como sua obra nos oferece diversas chaves de leitura para compreender onde estamos e, sobretudo, como sair da condição de subalternidade imposta no mundo.
Ao estudar a historiadora, Christen destacou que o legado de Beatriz Nascimento vai muito além de suas pesquisas sobre quilombos. Um dos objetivos centrais da militante era afirmar a urgência de que a população negra narrasse a sua própria história. Para a professora, Beatriz deve ser compreendida a partir da ótica da tradição radical negra:
“Beatriz Nascimento faz parte dessa tradição radical. Ela realizou exatamente o que Cedric J. Robinson propõe: resgatar a história do quilombo para identificar nossa trajetória de luta política. Isso gera uma tradição radical do negro brasileiro, que é distinta da história oficial da nação”, explicou.
Nesse contexto, inserem-se também os Black Studies — os estudos negros — que articulam a produção acadêmica ao movimento político, reafirmando a necessidade de que sejam os próprios negros a falar sobre sua história.
“A produção intelectual negra é uma ameaça à supremacia branca patriarcal, ao fascismo, ao imperialismo e à colonização. Por isso, precisamos resgatar a conexão entre o movimento negro e a produção epistemológica. Tudo isso compõe o nosso mapa de libertação. Beatriz Nascimento sabia disso e dedicou sua vida a convencer as pessoas dessa urgência”, afirmou.
O olhar de Beatriz sobre os quilombos
Durante suas pesquisas com comunidades de candomblé, Beatriz Nascimento compreendeu a palavra quilombo a partir da tradição Bantu. A partir dessa descoberta, decidiu viajar a Angola, onde traçou a genealogia do termo em diálogo com o povo imbangala. “Em sua investigação, ela mostra que quilombo se refere a muitos aspectos dessa tradição, mas sobretudo ao ritual de iniciação. Ou seja, o ato de se retirar e se recolher para fortalecer-se. Não apenas no sentido espiritual e individual, mas também para a guerra. Para Beatriz, quilombo é, antes de tudo, um acampamento de guerra.”
Portugal também foi incluído em seu percurso de pesquisa, com o objetivo de examinar nos acervos portugueses as descrições atribuídas ao fenômeno quilombo. No Brasil, acompanhada da antropóloga Marlene Cunha — sua amiga e então assistente de pesquisa —, percorreu quilombos, trabalho que culminou em sua tese de mestrado.
Entre as contribuições centrais de Beatriz Nascimento, está a compreensão de que os quilombos podem ser entendidos como espaços de busca pela paz. “Quilombo é guerra em busca de paz, não é guerra em busca de guerra”, enfatizou. Ela amplia esse conceito para o presente, apontando que quilombos também podem ser reconhecidos em espaços de acolhimento político e cultural da população negra, como escolas de samba, bailes black, terreiros e favelas.
Orí
Outro ponto abordado durante a palestra foi o filme Ôrí, de 1989, que documenta os movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, passando pela relação entre Brasil e África e tendo o quilombo como ideia central. A obra passou 10 anos sendo produzida por Beatriz Nascimento e Raquel Gerber.
Segundo Christen, a intelectual trouxe as ideias de sua tese para o filme. “Tudo o que ela narra já estava contemplado em sua escrita. Então, trata-se de uma reflexão das contribuições intelectuais dela e eu espero que as pessoas identifiquem isso”. Em contradição, reforça o fato de seu nome não ser citado ou aparecer com a devida reverência em citações relacionadas ao documentário ou em acervos, já que não é a diretora.
“Mas sem ela o filme não existe”, declara. “Todas as ideias são orientadas por ela. Beatriz colocou a alma neste filme. A Bethania Nascimento [filha da historiadora] me contou lembrar a ausência da mãe enquanto trabalhava neste projeto. Então, até a Bethania está lá, por mais que seja invisível”.
Christen conecta esse elemento com algo maior, tema de um trabalho fundado por ela em 2017, intitulado Cite Black Women [ Cite uma mulher negra, em tradução livre]. A campanha chama a atenção para o apagamento das contribuições intelectuais e epistemológicas da mulher negra no mundo, para além da academia.
“Não aparecemos nas bibliografias. As pessoas pegam nossas ideias e não as citam [referenciam]. Então, historicamente e atualmente, a mulher negra é apagada e invisibilizada da produção intelectual. E não falo simplesmente de livros, mas em geral. Desde a receita que a sua avó usa para cozinhar alguma coisa até a arte”, endossa Christen.
Portanto, o intuito da campanha é chamar a atenção para esse apagamento e provocar as pessoas a refletirem sobre as decisões que colaboram para a exclusão das mulheres negras da história. “Quando olhamos para a obra Orí temos que pensar nessa conversa”, diz. “A obra é altamente importante, mas há uma necessidade de resgatar isso”.
Diálogos em Geledés
A atividade Diálogos em Geledés tem como objetivo compartilhar reflexões sobre o feminismo negro e o movimento negro contemporâneo, trazendo ideias que informam e impulsionam a produção de conhecimento. A edição com a professora Christen Smith integrou o projeto “Raça na tessitura das dinâmicas do trabalho e da educação: tramas, alterações e desafios para o campo da pesquisa e demandas de políticas públicas”, realizado em parceria com a Fundação Carlos Chagas e a Fundação Tide Setúbal.
Na abertura do encontro, Suelaine Carneiro, coordenadora de Educação e Pesquisa de Geledés, ressaltou:
“Christen faz um debate fundamental sobre racismo e feminismo, mas principalmente sobre os desafios contemporâneos e como podemos construir propostas e ações de enfrentamento diante de um momento tão nefasto da sociedade mundial.”
Em seguida, Sueli continuou a apresentação da antropóloga e destacou sua dedicação em reverenciar e disseminar o pensamento de intelectuais negras. “Christen é uma jovem pesquisadora e mulher negra comprometida e engajada em cuidar dos acervos e produção acadêmica das mulheres negras mais velhas. Ela tomou para si a responsabilidade de dar a conhecer o pensamento de Beatriz fora do Brasil. Hoje ela vai nos oferecer e nos brindar com a possibilidade de ver Beatriz para além dos clichês com os quais nós estamos acostumados a pensá-la”. É a nossa Beatriz Nascimento, mas com uma lente ampliada, disse Sueli.