Cidinha da Silva lança o livro ‘Racismo no Brasil e afetos correlatos’

Por: MÁRCIA MARIA CRUZ

Publicação de Cidinha Silva é convite à desnaturalização de situações enraizadas na cultura brasileira.

A propagandeada diversidade étnica do povo brasileiro e o processo de miscigenação são apontados como o tecido que forma o manto da democracia racial no país. Três episódios, envolvendo jogadores e um juiz de futebol, no entanto, colocaram em xeque essa fina película de harmonia racial. Em um desses episódios, o jogador do Cruzeiro, Tinga, foi hostilizado por parte da torcida peruana, que fazia sons de macaco quando ele tocava na bola em partida contra o Real Garcilaso, em Huancayo, no Peru. Pouco tempo depois, já no Brasil, o volante do Santos, Arouca, foi vítima de agressão racista por parte da torcida do Mogi-Mirim e, na mesma semana, o árbitro Márcio Chagas da Silva foi chamado de macaco por torcedores do Esportivo em Bento Gonçalves. Como esses episódios jogaram luz a situações em que a cor da pele é motivo para o alijamento de um grupo social, o livro ‘Racismo no Brasil e afetos correlatos’ (Editora Conversê), de Cidinha da Silva, é um convite à desnaturalização de situações enraizadas na cultura brasileira.

Recém-lançada, a obra é composta por 37 crônicas e 17 textos opinativos reunidos pela autora. Inicialmente, os textos foram produzidos para diferentes plataformas online – blog e páginas no Facebook, em que a autora tem presença destacada. Com repercussão no ambiente digital, os textos foram compartilhados centenas de vezes e serviram de referência para debates sobre a questão racial.

O argumento central da autora aponta para a forma como o racismo se traveste, muitas vezes amparado em formas cordiais e até afetuosas de manter situações caracterizadas pela desigualdade de acesso e oportunidade dado a cor da pele e outras características como textura do cabelo, formato do nariz, entre outros aspectos da aparência. Para fazer esse exercício reflexivo, Cidinha costuma não tergiversar. Muito clara em suas posições, a escrita é reflexo de uma forma de olhar o mundo que não se pauta pela colonização das ideias. Cidinha fala de um lugar em que o negro assume o protagonismo e que não há intermediários para traduzir suas demandas e questões. Trata-se de uma fala amparada em outras intelectuais negras como Sueli Carneiro, Leda Martins e Luiza Bairros, que está a frente da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Social, artistas como Leci Brandão e Zezé Motta, que desbravaram o campo das artes para negros, principalmente na televisão, que, conforme aponta Cidinha, ainda não reflete a diversidade da composição do povo brasileiro em seu quadro artístico. Também traz referências de Lira Marques, artista do Vale do Jequitinhonha.

Todas essas mulheres servem de inspiração para as reflexões de Cidinha, que trazem sempre o recorte de gênero, classe e raça. Como transita pela literatura, as crônicas, embora com um forte cunho político, trazem claramente uma preocupação com a linguagem. A escrita ficcional de Cidinha parte de uma visão nascida nas tradições da cultura negra, com a valorização da ancestralidade e divindades das religiões de matizes africanas. Embora as crônicas nasçam de episódios cotidianos que tocam a questão racial, a autora, vez ou outra, flerta com essa bagagem tão presente em sua obra. A cosmovisão é parte de uma construção argumentativa para desconstruir o racismo à brasileira e o que ela chama de afetos correlatos.

Por travar uma disputa discursiva sobre o que é ser negro e a importância desse grupo para a construção do Brasil, Cidinha volta seu olhar para os meios de comunicação e, como resultado de um exercício quase que diário, traz reflexões sobre como as representações são construídas. A ela interessa a inscrição pública do corpo negro seja de personalidades, como Anderson Silva; autoridades, como o presidente norte-americano Barack Obama e o presidente do STF Joaquim Barbosa; seja Madalena, a vereadora transexual negra.

NOVELA A autora também dedica boa parte de suas reflexões à novela ‘Lado a lado’, que trouxe como protagonistas Camila Pitanga e Lázaro Ramos. O folhetim é apontado como um marco na teledramaturgia brasileira não só por ter como protagonistas dois negros, mas sobretudo pelo esforço de recompor período posterior à abolição da escravatura sem eventuais estereótipos.

A novela é pretexto para refletir sobre relações interraciais, sobre o processo de educação de crianças negras e até momentos como a Revolta da Vacina e a disseminação da capoeira. A experiência de prosadora dá leveza ao texto, que reflete sobre questões polêmicas. Também não se exime de se posicionar em controvérsias como a PEC das domésticas ou ação do Joaquim Barbosa no julgamento do mensalão.

Seja sobre a ficção ou episódios do cotidiano, a tentativa da autora é mostrar que, muitas vezes, uma postura cordial, como a da mocinha branca assumir as dores da amiga negra que sofre racismo, pode, na verdade, ser uma forma de manter o racismo, uma vez que tal tutela nega ao negro o papel de protagonista e de sujeito na construção da sua liberdade.

Racismo no Brasil e afetos Correlatos
. Editora Conversê
. 168 páginas

 

Fonte: O ESTADO DE MINAS

 

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