Clair Castilhos: Não somos ovelhas… Chega de pastores!

Em Sant’Ana do Livramento, cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul onde nasci, região da campanha, zona de pecuária, estão localizadas imensas estâncias de criação de gado. Estendem-se ao longo das coxilhas verdes e onduladas, poucas árvores, sangas e açudes. Naquela imensidão de paisagem bucólica vivem vacas, bois e ovelhas. A cachorrada corre, late e ajuda a pastorear os bichos.

Os contos e lendas locais, assim como os causos contados em volta do fogo nos galpões, em geral são inspirados nos personagens, tanto animais como humanos, que vivem naquelas paragens.

Há uma expressão popular que é a seguinte: …”ah! o fulano (a) é uma cabeça de ovelha!” Trata-se de algo similar ao “Maria vai com as outras”. A explicação para a “cabeça de ovelha” é que, segundo a tradição, quando o vento bate na orelha da ovelha, ela anda na direção do vento. E todas as outras vão atrás. Esta lembrança me ocorre quando penso no cotidiano de nossas vidas infestadas de carros, propagandas, poluentes e igrejas, igrejas, igrejas, templos, oráculos, cenáculos, tabernáculos, catedrais e toda a parafernália religiosa que toma conta das cidades.

Integrantes desse cenário aparecem os pastores. Pastores que pastoreiam ovelhas, ovelhas que são cidadãos e cidadãs. Estas ovelhas são atraídas para as mangueiras onde é feita a tosa [1], a imolação de sentimentos, a repressão de desejos, a visualização do terror do inferno. As ovelhas saem dos templos tosquiadas com a ilusão de que poderão ser felizes…

Nas histórias bíblicas, ovelha sempre foi sinônimo de animal dócil, pacífico oferecido em sacrifício para Deus, nas festas e rituais. Quase sempre eram as vítimas, tanto nos relatos bíblicos e mitológicos, assim como nas fábulas e histórias infantis. Agnus Dei! Cordeiro de Deus… E assim por diante. Enquanto só “o Senhor é o meu pastor”, ainda era compreensível. No entanto, com a banalização das crenças, com o desencanto do povo com o mundo, com as falsas necessidades criadas pela cultura do consumo, surge, com força avassaladora, uma multiplicidade de arautos da fé e da salvação: os pastores! Mas a pergunta dramática é: – quem nos salva dos pastores?

Até porque, quando nos detemos no conteúdo das fábulas, as ovelhas, carneiros, veados, enfim, os animais frágeis e pastoreáveis sempre sofrem e morrem sozinhos, os tais pastores nunca estão por perto para salvá-los.

Agora que não vivemos mais naquelas épocas pastoris, criou-se uma nova espécie de seres apocalípticos: os pastores deputados e midiáticos.

Há necessidade de entendermos essa nova transfiguração, pois os mesmos que infestam as tribunas e bancadas das casas legislativas e tratam os espaços de cidadania como se fossem suas igrejas e seus comércios específicos são versões repaginadas daqueles que foram chamados de “vendilhões do templo”. No parlamento brasileiro os dízimos se transformam em votos e estes em influente moeda de troca com os governantes.

Parece que a confusão proposital está instalada. Foi gestada e parida uma espécie de nova “arca da aliança”, uma arca profanada, onde as tábuas da lei foram trocadas por um promíscuo receituário de preconceitos, ódio, misoginia e intolerância. Esses decálogos são apresentados na forma de projetos de lei. Proliferam aberrações do tipo “Estatuto do Nascituro”, “Bolsa Estupro”, “Cura Gay”, “Criminalização da Heterofobia”, “CPI do Aborto” entre outras. Uma mistura infectocontagiosa do fisiologismo com o oportunismo eleitoral. Esta poção maléfica grassa e contamina os entes políticos de todos os matizes.

A grande inovação é que as ovelhas oferecidas em sacrifício em geral são as mulheres, os negros, as lésbicas, os gays, os trabalhadores rurais sem terra, os quilombolas ou os indígenas, entre outros. Um admirável mostruário de uma infindável oferta de brindes oriundos das camadas oprimidas da população ou entre aqueles que divergem da ordem heteronormativa, colonial, opressora, misógina, hipócrita e exploradora das classes trabalhadoras. Aqueles seres incômodos que não querem ser ovelhas. Aqueles que querem ventos de todas as direções. Até porque na lógica dominante as ovelhas têm apenas dois destinos: ou viram churrasco ou doadoras de lã.

Analisar as novas coreografias do espetáculo político-partidário brasileiro é algo empolgante e tóxico. A cada dia uma nova modalidade de atrativos místicos é desenhada no universo de nosso Congresso.

Portanto, é preciso transgredir, denunciar, falar, entender as coisas que acontecem e visualizar as novas bestas do apocalipse que, além de fome, peste e guerra, acrescentam preconceito, alienação, comodismo, passividade e violência.

Finalmente, é necessário entender que na relação pastor x ovelha os cidadãos (ãs) são convertidos em gado. Derrubar mangueiras, correr livres em direção às novas utopias eis a tarefa que se impõe!

[1] Tosar – verbo transitivo direto – tosquiar, cortar o velo de animais lanígeros – Ex.: t. carneiros. Derivação: sentido figurado. – cortar rente; rapar, tosquiar.

Ovelha(ê) [Do lat. tard. ovicula.]  – Substantivo feminino. 1.Fêmea do carneiro. 3.Fig. O cristão, em relação ao seu pastor espiritual.

Clair Castilhos Coelho é farmacêutica-Bioquímica, mestre em Saúde Pública, Professora Adjunta IV do departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (aposentada), Secretária Executiva da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.

 

 

Fonte: Viomundo

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