Como filmes de fantasia fazem metáfora do racismo ao mesmo tempo em que apagam negros

Produções como ‘Animais Fantásticos’ têm temas de opressão racial, mas não reconhecem a questão da raça.

Por Zeba Blay, do Huff Post Brasil

Eddie Redmayne e Katherine Waterson em ‘Animais Fantásticos’.

O deslumbre e a maravilha de Animais Fantásticos e Onde Habitam começam a desmoronar quando se considera o fato de o filme ser ambientado em Nova York em 1926.

A história acontece no auge da era do jazz e do renascimento do Harlem. Mesmo assim, seu elenco, liderado por Eddy Redmayne e Katherine Waterson, é predominantemente branco, branquíssimo.

A chamada questão da “diversidade” em Hollywood é um tema do momento há algum tempo, mas a brancura de Animais Fantásticos é indicativa de um problema específico dos filmes de fantasia e de ficção científica: eles são metáforas do racismo e opressão da vida real que apagam as pessoas não brancas.

Escrito por J.K. Rowling e ambientado no universo de Harry Potter, Animais Fantásticos acompanha o bruxo britânico Newt Scamander em seu primeiro contato com o mundo dos magos americanos, procurando juntar vários animais fantásticos que escaparam de sua pasta encantada.

Scamander faz isso em uma Nova York que, na maior parte, parece ter sido estranhamente branqueada, mesmo em uma cena em que ele visita um bar no Harlem.

No ano passado, quando fãs nas mídias sociais manifestaram preocupação com o elenco inteiramente branco, J.K. Rowling lhes garantiu pelo Twitter:

Nem todo mundo em ‘Animais Fantásticos’ é branco.
Ela tem razão. Existem alguns poucos personagens não brancos no filme, se bem que poucos tenham papéis que exigem que eles falem e apenas uma atriz – Carmen Ejogo, que faz Madame Picquery, presidente do Congresso de Magia dos EUA, ou Macusa – tem um papel importante que envolve diálogos.

Em uma cena, uma elfa negra canta uma música de jazz num bar. Uma elfa da casa.

Filmes de gênero têm o objetivo de modificar nossa perspectiva e ampliar os limites de nossa imaginação. O importante neles é a suspensão do ceticismo. Por que, então, é tão difícil acreditar em um futuro ou em um passado mágico que incluam pessoas negras?

á para imaginar um mundo cheio de animais mágicos, mas não um harlem cheio de pessoas negras hahaha

Assim, esses filmes frequentemente criam muito pouco espaço para a presença de pessoas negras e pessoas não brancas. A ironia disso (e o que o torna tão incrivelmente frustrante) é que essas narrativas espelham a opressão vivida por grupos marginalizados na vida real.

Pode-se argumentar que, essencialmente, Harry Potter é uma história de luta contra a opressão e o domínio fascista. Ao longo da série vemos a discriminação contra magos com antecedentes não mágicos, descritos em tom pejorativo como sangues-ruins.

Do mesmo modo como Voldemort se projeta por toda a série Harry Potter como uma espécie de figura hitleriana, o mesmo acontece em Animais Fantásticos com o personagem Grindewald, um mago das trevas que acredita na supremacia dos magos sobre os trouxas e quer desencadear uma guerra racial ostensiva entre magos e trouxas, “em nome do bem maior”. Os paralelos com a supremacia branca são evidentes.

No entanto, todos os personagens principais do filme são brancos.

Os X-Men no retorno mais recente da franquia.

É uma prática comum. Em filmes de fantasia como Star Wars, O Senhor dos Anéis, X-Men, Divergente e no ainda inédito Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell, a opressão da vida real é mostrada de modo metafórico em histórias sobre mundos distópicos, mas a questão racial quase nunca entra na equação.

A franquia X-Men, por exemplo, procura expor os males do racismo, emprestando a discriminação social e política contra pessoas negras e usando-a para inspirar seus mutantes em sua maioria brancos, que são caçados e exterminados por suas habilidades sobre-humanas. O professor X e Magneto já foram vistos muitas vezes como representações de Martin Luther King e Malcolm X. Trata-se de um apagar supersimplificado.

Há uma espécie de perigo em se utilizar a opressão racial como modelo, porque ela, por sua própria natureza, não é universal.

Não é questão de pedir por “diversidade” pela simples diversidade. Trata-se de oportunidades perdidas. Porque mesmo os filmes de fantasia que porventura tenham personagens negros tendem a passar por cima da raça desses personagens, adotando uma abordagem indiferente à raça, apenas para parecer que se está falando de raça, mas sem fazê-lo a sério. Não seria muito mais fértil, por exemplo, explorar uma personagem de mulher negra poderosa no mundo da magia, mas que sofre opressões e pequenas agressões no mundo dos trouxas? Não seria possível incluir muito mais nuances? Se houvesse uma maneira de ampliar, abrir e desmontar esse mundo, quanto mais não poderíamos aprender?

Existem filmes de ficção científica e fantasia que já abordaram a questão racial de modo mais interessante, com mais matizes. O brilhante Brother From Another Planet, de 1984, traz Joe Morton como escravo extraterrestre negro que foge de seus senhores escravistas brancos de seu planeta. Mais recentemente, a série Jogos Vorazes reconheceu a divisão racial e socioeconômica entre o Distrito 11, de maioria negra, e a metrópole rica, de maioria branca, conhecida como o Capitólio. (Mas o filme foi acusado de “branquear” a heroína Katniss Everdeen, com a escolha de Jennifer Lawrence para seu papel.)

O cinema de fantasia é escapismo, então alguns podem argumentar que não é necessário reconhecer a questão racial e explorar a raça nesses filmes de maneira menos oblíqua e metafórica. Mas o cinema de fantasia também diz respeito a imaginar novos mundos para entendermos o sentido de nosso mundo. Se podemos imaginar viagens espaciais na velocidade da luz e dragões fantásticos, por que não podemos imaginar cenários que não apagam ou descontextualizam a raça em futuros hipotéticos ou passados de faz-de-conta?

Os filmes de fantasia e ficção científica que excluem a questão racial ou passam por cima dela ao mesmo tempo em que contam histórias de luta contra a opressão prestam um desserviço enorme às pessoas negras, tão ansiosas pelo blockbuster mais recente quanto qualquer outra pessoa. Não faz sentido pedir que tenhamos empatia com pessoas hipoteticamente oprimidas, quando pessoas que são oprimidas de fato na vida real são excluídas da narrativa.

Este texto foi originalmente publicado no HuffPost US e traduzido do inglês.

 

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