Como o hip hop invadiu as universidades para dialogar de igual para igual com as ciências humanas

Pesquisadores defendem que o movimento que se espalhou pelas periferias a partir dos anos 1980 produz conhecimento e é capaz de questionar os clássicos do pensamento brasileiro

Na noite de 14 de dezembro de 2022, alunos ocupavam um auditório na Unicamp para assistir a uma aula dos chamados “hip hop studies”. Ninguém estava ali para aprender a fazer rima, dançar break ou grafitar, mas para analisar álbuns dos Racionais MC’s como obras de interpretação do Brasil. O propósito era trazer para a universidade a cultura nascida nos bairros negros e latinos de Nova York em 1973. Não apenas como objeto de estudo a ser dissecado por acadêmicos, mas como produção intelectual capaz de dialogar em pé de igualdade com os clássicos.

Não à toa, uma aluna disse que uma canção como “Fim de semana no parque” fala com propriedade da segregação espacial na cidade de São Paulo tanto quanto um livro como “Cidade dos muros”, de Teresa Caldeira. O próprio DJ americano Afrika Bambaataa já disse que o quinto elemento do hip hop (formado originalmente por rap, DJing, breakdance e grafite) é o conhecimento.

A expressão “hip hop studies” ganhou força a partir da publicação de “That’s the joint!: the hip hop studies reader”, antologia organizada por Murray Forman e Mark Anthony Neal em 2004. Desde então, o campo de estudos se consolidou em importantes universidades americanas, como Duke, Princeton e Harvard, onde funciona o Hiphop Archive & Research Institute. No Brasil, o interesse também vem crescendo. Do Amapá a Minas Gerais, jovens pesquisadores defendem teses e oferecem cursos sobre o movimento que se espalhou pelas periferias de todo o mundo nos anos 1980.

‘Honoris causa’

Desde 2018, por exemplo, “Sobrevivendo no inferno”, álbum dos Racionais já editado em livro, faz parte das obras cobradas no vestibular da Unicamp. No ano passado, a universidade criou o I Arquivo Brasileiro da Cultura Hip Hop, que reúne material como álbuns, livros, fotos e documentos sobre o gênero. Agora, a instituição estuda conceder doutorados honoris causa aos membros dos Racionais.

Em novembro, Mano Brown, Ice Blue e KL Jay (Edi Rock não compareceu) foram a Campinas dar aula assistida presencialmente por 700 pessoas e transmitida via YouTube. Na tal aula de “hip hop studies” em dezembro, da disciplina “Tópicos de antropologia IV: Racionais MC’s no pensamento social brasileiro”, acompanhada pelo GLOBO, a professora Jaqueline Santos comemorou a audiência: mais de 192 mil visualizações on-line até então (já são mais de 220 mil). Oferecido pelo Departamento de Antropologia da Unicamp, o curso contou com 45 alunos matriculados — não somente de Ciências Sociais, mas também de História, Biologia e Engenharia Civil — e 18 ouvintes. Devido ao grande número de inscritos, foi preciso procurar uma sala de aula maior.

Em semestre anterior, Santos já dera um curso de introdução aos “hip hop studies”, no qual examinou os elementos da cultura, apresentou a cena em países como Cuba, Colômbia e Angola e trabalhou textos de pesquisadores como Elaine Nunes de Andrade, autora de estudo pioneiro sobre o movimento no Brasil. A bibliografia sobre o tema está em expansão. Ao lado de Daniela Vieira, professora de Sociologia da Universidade Estadual de Londrina, Santos coordena a coleção Hip Hop em Perspectiva (editora Perspectiva), que lançou “Barulho de preto”, de Trica Rose, e prepara uma antologia sobre os Racionais e uma tradução de “From black power to hip hop”, de Patricia Hill Collins.

Aula sobre Racionais MC’s e o pensamento social brasileiro, na Unicamp (Foto: Edilson Dantas)

Tudo interligado

Os “hip hop studies” conversam com diversas áreas do saber. Santos lembra que, no semestre que passou em Harvard, eram oferecidas disciplinas sobre hip hop nos departamentos de Antropologia, Economia e Ciências da Religião. Professora da Universidade da Califórnia, Halifu Osumare acredita que tamanha interdisciplinaridade reflete o fracasso das ciências humanas em incluir “as perspectivas dos marginalizados”. O hip hop, diz, é a produção de “intelectuais das ruas”:

— A experiência também gera conhecimento. Consciente das muitas indignidades sociais, a juventude usa o hip hop para falar do próprio cotidiano. É isso que chamamos de “droppin’ science” (fazer rap sobre assuntos importantes). Um dos objetivos dos “hip hop studies” é o “repping your hood”. Traduzindo: representar a quebrada onde o conhecimento foi produzido, em meio à pobreza, a interações com a política e o crime e à luta pela sobrevivência — afirma.

Santos diz que o hip hop propõe discussões complexas sobre relações raciais e de gênero, segregação espacial nas cidades, sistema carcerário e outros assuntos ligados a “grupos historicamente discriminados”. E que também dialoga com autores que pensaram o racismo brasileiro, como Alberto Guerreiro Ramos e Clóvis Moura, além de questionar clássicos que não teriam dado a devida atenção ao tema.

— O hip hop tensiona a questão racial de uma maneira que um autor como Sérgio Buarque de Holanda foi capaz de fazer. Gilberto Freyre, com seu conceito de lusotropicalismo, não conseguiu explicar a tensão racial como produtora de desigualdade e violência. Até pensadores contemporâneos têm dificuldade — diz.

Daniela Vieira afirma que o rap denuncia genocídio negro e refuta a tese da democracia racial de forma mais explícita do que os clássicos, mas faz ressalva:

— Hip hop também é ciência, e grupos como os Racionais abordam problemáticas caras ao pensamento social brasileiro de forma mais direita e com mais fácil circulação do que os clássicos. Mas não podemos esquecer que são materiais diferentes. Uma coisa é uma expressão artística ligada a um movimento social. Outra é um ensaio de interpretação, fruto de um processo mais lento.

Segundo ela, a inserção da cultura hip hop na academia reflete a “nova condição do rap”, que passou a ocupar “novos espaços sociais”.

Num ensaio publicado em 2020, Halifu Oxumare mostra, com base em dados, que o uso do hip hop em escolas e universidades americanas contribui para melhorar o desempenho de alunos que não são brancos. Autora de “A pedagogia hip hop: consciência, resistência e saberes em luta” (Appris), Cristiane Correia Dias vê o mesmo resultado nas escolas onde trabalha, na periferia de São Paulo. Seu desafio é orientar professores a usar o hip hop para introduzir os assuntos do currículo escolar. Ela dá um exemplo: uma canção como “Negro drama”, dos Racionais, ajuda a entender conceitos geográficos como marginalização e facilita a relação com autores como Milton Santos.

— Eu mesma só entendi Freud porque conhecia “Sobrevivendo no inferno” — brinca.

Mestranda na Unicamp, Gabriela Costa Lima — ela fez o curso sobre os Racionais e pensamento social brasileiro — afirma que legitimar o conhecimento transmitido pelo hip hop aumenta a “autoestima acadêmica” dos alunos da periferia.

— Nosso capital cultural também tem valor. Tem quem entre na universidade já sabendo quem são Durkheim, Lévi-Strauss e Bourdieu. A gente entra aqui conhecendo os Racionais — diz.

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