Como uma mulher negra, estou cansada de ter de provar minha feminilidade

“E não sou uma mulher?” – algumas evidências históricas sugerem que Sojourner Truth nunca fez essa famosa pergunta. No entanto, como uma mulher alta e de pele escura, esse é o questionamento com a qual lutei toda a minha vida.

Por Hannah Eko Do Buzzfeed

Loveis Wise for BuzzFeed News

“Homem ou mulher?”, me perguntou o estranho

Eu tinha 21 anos e estava em uma loja de conveniência. Eu só queria comprar algo gelado para meus irmãos beberem.

Fiquei tão surpresa com o modo casual com que ele questionou meu gênero que acidentalmente respondi: “Homem!” Depois, percebendo meu erro, acrescentei: “Não, não – mulher!” Meu rosto corou enquanto eu levava as bebidas até o caixa.

O estranho sorriu para mim, como se estivéssemos compartilhando algum segredo. “Caaaara”, falou, colocando seus óculos escuros, “Você disse homem primeiro”.

Voltei em silêncio para o meu carro. Minha irmã me perguntou, várias vezes, o que havia de errado. Contei a história a ela, rindo para mostrar que estava bem. Mas, segundos depois, quando dei a ré para sair do estacionamento, bati na porta do passageiro de um sedã cor creme. Ninguém se machucou, mas ambos os carros ficaram bem avariados.

Durante mais de uma década, passei por diversas experiências como essa: ser confundida com um homem em público. E, apesar de nem todas terem resultado em um acidente de carro, todas me deixaram desorientada e me perguntando qual pedacinho de minha identidade era responsável pelo “ei, moço” equivocado.

Algumas vezes, eu dizia para mim mesma que era por causa da minha altura e o modo automático que a maioria das pessoas associa altura com masculinidade. Outras, me perguntava se essa reação era provocada por minha voz grave, minha roupa andrógina ou meu cabelo curto.

No entanto, sempre tive consciência de que minha raça e meu gênero desempenhavam um papel importante nesses “mal-entendidos”. Vivi tempo o bastante nesse mundo para perceber que raramente as mulheres negras têm pleno acesso à sua feminilidade.

Não foi coincidência o fato de um cara branco qualquer em uma loja de conveniência achar perfeitamente normal perguntar para mim se eu era ou não uma mulher.

Mpi / Getty Images

A ex-escrava e abolicionista Sojourner Truth (1797–1883), originalmente Isabella Van Wagener.


É possível que Sojourner Truth nunca tenho feito a famosa pergunta que atribuem a ela. Ex-escrava, Truth ficou conhecida por seu discurso inflamado na Convenção dos Direitos da Mulher em Ohio (EUA), em 1851.

Segundo uma transcrição do discurso feita por Frances Dana Gage, ativista dos direitos da mulheres, e publicada no jornal “New York Independent”, em 1863, Truth várias vezes repete a pergunta retórica: E não sou uma mulher?

No entanto, também há outra transcrição do discurso, escrita por Marius Robinson, repórter e amigo de Truth, em que a pergunta não aparece.

Apesar de muitos historiadores acharem que a versão de Robinson é provavelmente a mais fiel, ela é a menos conhecida pelo público. Em vez disso, é a iteração ““E não sou uma mulher?” que muitos estudantes leem quando estudam pensamento feminista negro.

A ideia de que mulheres negras não são femininas está enraizado na história dos EUA. “Se as mulheres negras são estereotipadas como inabaláveis nos EUA, nossa pesquisa demonstra que há outro mito intimamente ligado a essa ideia e que ainda persiste: o de que as mulheres negras são menos femininas do que outras mulheres e, na verdade, chegam a ser emasculadoras”, escreveram a jornalista Charisee Jones e a pesquisadora Kumea Shorter-Gooden em Shifting: The Double Lives of Black Women in America (Em Mutação: A Vida Dupla das Mulheres Negras na América, em tradução livre).

“Esse mito era traduzido em personagens como Tia Jemina [personagem-símbolo de uma marca de produtos culinários nos EUA. A figura de Tia Jemina é baseada no estereótipo das mammys, escravas que trabalhavam como babás e empregadas domésticas para famílias brancas, principalmente no Sul dos Estados Unidos. Para efeitos de comparação, podemos fazer o paralelo com a personagem de Tia Nastácia na obra de Monteiro Lobato] e Sapphire [o estereótipo da mulher negra raivosa e castradora], depois evoluiu para o arquétipo da menina negra grosseira e atrevida, uma imagem onipresente na cultura popular (…) tais representações possuem um peso incomensurável na psiquê das mulheres negras, que em seu desejo de serem vistas como ‘damas’, para combater a noção de que são menos femininas, acabam adotando um modo de falar e um comportamento que não reflete quem realmente são.”

 Foto: Eduardo Munoz Alvarez/AFP

Serena Williams representando a Seleção Americana, em Asheville, Carolina do Norte.


Mulheres negras são geralmente vistas como possuidoras de atributos associados à masculinidade: somos “fortes”, “indestrutíveis”, “invulneráveis à dor”.

Uma pesquisa realizada em 2014 pelo site de relacionamentos OkCupid sobre os hábitos de seus usuários revelou que 82% dos homens não negros tinham preconceito contra mulheres negras. Serena Williams (assim como sua irmã mais velha, Venus) já foi comparada com um homem e teve de aturar as polêmicas sobre seu incrível e belíssimo corpo durante quase toda a carreira. Leslie Jones foi alvo de insultos absurdos de cunho racista e sexista antes da estreia do filme Caça-Fantasmas. Uma funcionária pública da Virgínia Ocidental achou que não havia problemas em chamar a ex-primeira dama dos EUA Michelle Obama de “macaca de salto alto”. Uma mulher negra de 1,60m assustou tanto um homem branco (e bem mais alto) que acabou levando um tiro no rosto.

Minha vida como uma mulher alta e de pele escura fez com que eu tivesse de enfrentar constantemente as noções de gênero imputadas a todas as mulheres negras, além de encarar o modo como internalizei muitas dessas ideias nefastas. Apesar de hoje poder dizer que exerço minha feminilidade de um modo muito menos dependente de validações externas, o caminho até essa convicção não foi nem um pouco fácil. Passei muito tempo lutando com a pergunta “E não sou uma mulher?” – não por incerteza minha, mas por causa da aparente certeza do resto do mundo.


Nunca esquecerei a primeira vez em que fui confundida com um homem. Eu estava na Feira Estadual do Novo México e era recruta em treinamento de uma academia militar particular em Roswell, Novo México (EUA). Era nossa primeira folga – os cadetes podiam passar o dia inteiro fora do campus. Mesmo com a obrigatoriedade da utilização do uniforme, ainda seria um dia divertido.

Passei muito tempo lutando com a pergunta “E não sou uma mulher?” – não por incerteza minha, mas por causa da aparente certeza do resto do mundo.

Eu estava andando com Lauren, uma amiga minha bonita, de pele clara e mais baixa, e metade do time de basquetebol masculino estava na nossa cola, todos loucos para pegar o telefone de Lauren. Chegamos até a área da barraquinha do “Teste Sua Força”. Eu estava andando à frente, os caras ficaram para trás, flertando com minha amiga.

“Pode vir, cavalheiro!”, gritou o atendente da barraca em minha direção, com uma voz que só posso descrever como a de um locutor de circo.

Fiquei morta de vergonha, torcendo para os caras não terem ouvido. Mas as risadinhas abafadas atrás de mim acabaram com as minhas esperanças. O atendente, nervoso, pediu mil desculpas e me ofereceu uma “martelada” grátis. Acertei o grande botão escuro sem entusiasmo e, apesar de não ter chegado nem perto do “Megaforte”, o atendente me deu o primeiro prêmio – um cachorro de pelúcia de 1,20 metro.

“É o uniforme”, disse para mim enquanto eu me afastava, com o cachorro embaixo do braço.

É possível que dessa vez eu tenha sido confundida com um homem por causa do meu uniforme militar, quadradão e de corte reto. Mas, mesmo antes dessa experiência, sempre achei que minha feminilidade nunca foi algo claramente estabelecido.

Se as mulheres eram (supostamente) alvo de todas as maldades do mundo, por que nunca me acompanharam até em casa após o baile da escola, como faziam com minhas amigas brancas no ensino médio? Por que me ensinaram a ser “durona” e me rotularam como “forte” antes mesmo de eu entrar no ensino fundamental? Na infância, eu não entendia isso. Não completamente, pelo menos.

E as mulheres não precisam ser amazonas de pele escura (como eu) para terem de lidar com o policiamento de gênero. Em “Fome”, a mais recente autobiografia de Roxane Gay, a autora detalha as inúmeras vezes em que estranhos não a viam como mulher por causa do seu peso. E as mulheres negras trans ou “que parecem lésbicas” são as maiores vítimas de violência, incluindo o risco de morte, por causa do seu suposto gênero.

Kean Collection / Getty Images

A feminista, abolicionista e reformista social norte-americana Frances Dana Barker Gage (1808–1884), por volta de 1840.

Ter sua feminilidade questionada e, posteriormente, desprezada é algo que Sojourner Truth conhecia muito bem. Segundo Nell Irvin Painter, historiadora da Universidade Princeton e autora do livro Sojourner Truth: A Life, A Symbol (Sojourner Truth: Uma Vida, Um Símbolo, em tradução livre), Sojourner nasceu no fim da década de 1790 no norte de Nova York, recebendo o nome de Isabella dos pais, James e Elizabeth Baumfree, dois escravos de Johannes Hardenbergh.

Sua vida nunca desviou muito das crueldades flagrantes da escravidão na América: abuso sexual constante, péssimas condições de vida, separação familiar abrupta e arrasadora. Isabella ganhou sua liberdade em 1826 e alterou seu nome para Sojourner Truth em 1843.

“Pensamos em Truth como uma presença natural e descomplicada em nossa vida como nação. Em vez de uma pessoa na história, ela funciona como um símbolo. Para apreciarmos o significado do símbolo – Mulher Negra Forte –, não precisamos saber quase nada da pessoa”, escreveu Painter. “Como abolicionista e feminista, ela usou seu corpo e sua mente com um único objetivo, representar fisicamente mulheres que tinham sido escravizadas. Num período em que a maioria dos americanos achava que os escravos eram todos homens e as mulheres eram todas brancas, Truth personificava um fato que ainda merece ser reiterado: entre os escravos, havia mulheres; entre as mulheres, havia negras.”

A maior parte dos relatos sobre Truth que datam daquela época são descrições impressionadas dos seus atributos físicos. Para Harriet Beecher Stowe, autora de “A Cabana do Pai Tomás”, ela era a “Sibila Líbia”, uma referência à profetisa norte-africana pintada na Capela Sistina por Michelangelo. No seu prefácio ao discurso “E não sou uma mulher?”, Frances Dana Gage escreveu que Truth era uma “criatura estranha e maravilhosa”, com uma “constituição quase amazônica, chegando perto de 1,80 metro, cabeça erguida e olhos que cortavam as nuvens, como em um sonho”. A descrição de Gage ainda menciona o fato de Truth aparecer de braços nus, até os ombros, diante da multidão. Essa é a imagem de Truth que a maioria das crianças americanas verá durante as aulas do breve Mês da História Negra: uma mulher negra alta e de pele escura, mostrando os músculos como um halterofilista na praia. Seu corpo sendo um testamento ao modo como ela subvertia as noções tradicionais sobre feminilidade.


Quando jogava basquete na faculdade, nos jogos fora de casa, quase sempre aparecia um babaca perguntando ao juiz se eu era realmente mulher, supondo em alto e bom som que eu tomava esteroides. Eu sabia que essas observações eram feitas para me desconcentrar e geralmente fingia não ouvi-las, mas a verdade era mais complicada. Isso me magoava, mas também me deixava confusa: eu jogava com mulheres brancas tão altas e fortes quanto eu. Por que esses caras não direcionavam seus insultos e esse policiamento da feminilidade alheia para elas? O que havia em meu corpo que atraía tanto escárnio e dúvida?

“A sociedade continua receosa de qualquer tipo de força feminina, ainda preferindo e abraçando donzelas delicadas – um sentimento antiquado que limita todas as mulheres”, escreveu Tamara Winfrey-Harris, escritora e feminista negra, em The Sisters Are Alright: Changing the Broken Narrative of Black Women in America (As Irmãs Estão Bem: Mudando a Narrativa Deturpada de Mulheres Negras na América, em tradução livre). “Mas como o rosto da donzela ainda é visto como branco e feminino, isso torna-se um problema particularmente para mulheres negras. Enquanto a vulnerabilidade e a ternura forem a base do que é aceito como feminilidade (e continuarem sendo um requisito para que a vida da mulher tenha valor), mulheres que são enxergadas como sobrenaturalmente indestrutíveis por causa da sua raça não terão sua feminilidade reconhecida.”

Mesmo tendo como inspiração artistas extremamente inovadoras como Grace Jones – exuberante em seus trajes que desafiavam as convenções de gênero –, eu ainda ficava receosa ao atravessar o campo minado da feminilidade. Quando era mais jovem, queria um corte pixie como o de Nia Long, mas ficava nervosa com um possível aumento no número de “ei, moço” que receberia. Ficava nervosa de ser encarada durante muito tempo durante meus alongamentos no basquete. Porra, até tinha vergonha do fato das iniciais do meu nome serem HE (ELE, em inglês). Gostaria de não ter passado tanto desconforto com a representação do meu gênero na época – além disso ter sido uma fonte significativa de angústia, perdi várias oportunidades de comprar smokings irados em brechós.

Foto: By Bruce Baker, CC BY 2.0, via Wikimedia Commons, dieses Bild wurde digital nachbearbeitet

Eu tenho de fazer muito para “provar” que sou feminina e compensar minha “negritude” (manter o cabelo longo, a voz suave, usar roupas femininas), enquanto as mulheres brancas ou de pele mais clara possuem muito mais liberdade para experimentações. Diane Keaton e Cara Delevingne “brincam” com o estilo tomboy. Quando uma estrela do cinema branca adota um corte pixie ou mais curto, ela é gamine ou elegante. Claro, mulheres negras podem e adotam esse visuais e cortes de cabelo andróginos, mas eles são percebidos de uma maneira diferente em nossos corpos: elegante se transforma em militante, boyish vira másculo.

A “negritude”, principalmente quando ligada ao corpo negro de uma mulher, é majoritariamente reconhecida como masculina. “Enquanto as mulheres brancas de classe média do período pré-Guerra Civil eram consideradas ‘anjos da casa’ – belas, devotas, castas e delicadas –, as mulheres negras eram encaradas como feras das plantations que não precisavam ter seus corpos, sensibilidades e virtudes protegidas. Apesar da economia americana do século 19, baseada na escravidão, ter dependido dessa distinção, essa visão bestial permaneceu muito tempo depois do fim da servidão”, escreveu Winfrey-Harris. Os pilares da feminilidade branca só se sustentam quando somos constantemente lembrados de sua sombra: a mulher negra forte e masculina.


Os pilares da feminilidade branca só se sustentam quando somos constantemente lembrados de sua sombra: a mulher negra forte e masculina.

A ausência mais marcante na versão de Robinson do discurso de Truth é a pergunta “E não sou uma mulher?”. Painter observou que, apesar de ser possível que Robinson não tenha prestado atenção à pergunta uma vez, é muito improvável que isso tenha acontecido quatro vezes (o número de vezes que ela é repetida na versão de Gage): “A interpretação de Gage do discurso de Truth é muito mais dramática do que o relato direto de Marius Robinson em 1851. Por meio da idealização e da elaboração, ela transforma os comentários de Truth em uma performance espetacular quatro vezes maior do que a versão dele.” Gage queria escrever algo dramático – não necessariamente relatar a verdade.

Não foi Truth quem sentiu a necessidade de perguntar à multidão, majoritariamente branca, se ela era considerada uma mulher – foi Gage. Escrevendo para competir com Harriet Beecher Stowe e para promover sua própria causa, como defensora do direito das mulheres, ela criou a caricatura de Sojourner Truth que a maioria das pessoas conhece hoje. Incapaz de vincular um conceito de força às mulheres brancas, que eram o foco principal de sua luta, Gage apostou que o corpo negro e “forte” de Truth convenceria seus leitores de que as mulheres não eram tão delicadas assim, a ponto de não poderem compartilhar os direitos e privilégios dos homens. Ela precisava do símbolo de Sojourner Truth para ganhar essa batalha: um relato honesto levando em conta a complicada humanidade de Truth não serviria.


Certa vez, quase briguei com um cara no bairro de Lower East Side, em Nova York, após ele me chamar de homem. Era 2014, sete anos após o atentado de 11/9. Eu e outra amiga estávamos saindo de um show burlesco em uma noite quente de verão. Um homem começou a nos seguir, berrando sobre sua destreza sexual à minha amiga, que o ignorava solenemente. Eu tinha certeza que ele perderia o interesse depois de um tempo, mas aquilo continuou por três quarteirões. Então parei e o encarei.

“Olha, cara, ela não quer falar com você”, eu disse.

Ele não tirou os olhos de mim. “Que porra, você é um homem?”, ele vociferou.

“Isso, eu sou a porra de um homem”, respondi.

E dei um tapa na cara dele.

A última vez que eu tinha brigado com alguém tinha sido na quinta série, e aqui estava eu, estapeando um estranho no meio de Nova York.

Passamos os próximos minutos discutindo, eu e o cara. Ele estava constrangido e queria brigar. Minha amiga tentava, sem muito sucesso, me tirar dali. Eventualmente, cada um seguiu o seu caminho, mas passei o resto da noite pensando sobre a pergunta do cara e a minha resposta. Fiquei me perguntando o porquê de eu assumir tão prontamente a identidade que o cara impôs a mim, o porquê de eu ter ficado tão irritada a ponto de agredi-lo fisicamente. A noite poderia ter acabado de uma maneira muito pior do que acabou. Não tinha mais como fingir que esse tipo de coisa não me afetava.

No dia seguinte, trabalhei como voluntária em um evento beneficente sem fins lucrativos que ensinava autodefesa. Coincidentemente, neste ano o evento seria uma “maratona de socos” no Prospect Park: uma grande roda de pessoas, a maioria mulheres, socando o ar ritmadamente. Enquanto eu socava o ar, pensava sobre a noite anterior. Nos últimos sete anos, me identifiquei verbalmente como homem duas vezes. Na primeira vez, foi um equívoco. Mas, na última, foi porque eu sabia que o homem parecia não me ver de outra maneira. Por quanto tempo eu ainda teria de anular minha feminilidade apenas porque isso era algo que o mundo esperava de mim?


Sojourner Truth não pôde opinar sobre o modo como sua feminilidade foi representada nos Estados Unidos. Ela acabou se tornando, em grande parte, um símbolo unidimensional no imaginário popular. Reimprimimos as palavras colocadas em sua boca por uma mulher branca ao lado de fotos de Truth em camisetas e bolsas. Alice Walker, Maya Angelou e Kerry Washington já leram versões do discurso de Gage, e o histórico texto de bell hooks (Gloria Jean Watkins) sobre feminismo intersecional apresenta o “E não sou uma mulher?” no seu início. Desvalorizamos o fato de uma ex-escrava analfabeta ter discursado por todo país em uma época em que até mesmo mulheres brancas enfrentavam obstáculos consideráveis para falar em público. Muitos não sabem que Truth foi a primeira mulher negra a ganhar um processo contra um homem branco (quando seu filho foi vendido ilegalmente de um Estado para o outro) em 1828. Em vez disso, preferimos ficar repetindo a velha pergunta.

Painter apurou que, apesar de sua pesquisa considerável e de sua biografia de Truth, a maioria das pessoas, incluindo os seus estudantes em Princeton, preferem a Sojourner Truth criada por Frances Dana Gage. Apesar da pesquisa de Painter ter revelado as incongruências da versão de Gage – o tempo passado entre o evento e o relato, o dialeto inadequado, a clara agenda de Gage por causa do seu trabalho para o direito das mulheres –, a maioria das pessoas ainda acredita nessa versão. A maioria prefere acreditar em uma Truth que continua sendo gigantesca, masculinizada, imutável.

Claro, recompor fatos históricos de uma era passada será sempre difícil. O livro The Narrative of Sojourner Truth (A Narrativa de Sojourner Truth, em tradução livre) oferece um vislumbre da complexidade dessa mulher magnífica, mas como ele não foi escrito por Truth (ela narrou a história para Olive Gilbert), não sabemos o que foi omitido, o que foi fantasiado e objeto de “sensacionalização” para o público branco.

Ao contrário de Truth, vivo em um mundo onde posso moldar minha própria história – mesmo com a intromissão do mundo exterior. E, por meio de uma mistura de introspecção feminista e muitas aulas de dança burlesca, foi o que eu fiz. Como mulher negra, o mundo raramente reconhecerá minha complexidade, mas eu não espero mais por isso. Após quase uma década de preocupação e desconstrução das narrativas racistas daqueles à minha volta sobre minha feminilidade, comecei a reivindicar o que era meu desde o início. Sem precisar fazer nenhuma pergunta. ●

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