A companheira de luta de Dom Paulo

Socióloga é uma das instituidoras do Fundo Brasil e viveu durante 25 anos uma história de resistência ao lado do cardeal

Aos 93 anos, Margarida Genevois é um ícone na defesa dos direitos humanos e não pensa em parar

Fonte: Huffpost Brasil

No final de setembro deste ano, a socióloga Margarida Genevois encheu uma sacola de frutas e caixinhas de água de coco e foi visitar um velho amigo. Ela faria uma viagem longa e, antes do embarque, quis se despedir do antigo companheiro de luta e resistência.

“Ele estava sempre sentado na poltrona, comendo lima e tomando água de coco. Achava que era o segredo da saúde. Era o que mais gostava”, lembra.

O amigo era o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, morto no dia 14 de dezembro, aos 95 anos, vítima de problemas pulmonares.

Na última visita, Margarida encontrou o religioso cansado, sem muita vontade de conversar, mais magro. Depois, acompanhou a evolução dos problemas de saúde dele e percebeu que a morte se aproximava. No dia da partida, recebeu a notícia com serenidade. Ao ler os jornais nos dias seguintes, gostou de ver o reconhecimento à atuação do cardeal, expresso em dezenas de artigos em que o religioso foi retratado como ícone dos direitos humanos.

“Ele tornou-se um símbolo da resistência”, afirma Margarida.

E é também o que ela é.

Moça criada na classe média alta e casada com um engenheiro francês que foi diretor da Companhia Rhodia Brasileira, Margarida era muito ligada aos frades dominicanos e, na linha religiosa da Teologia da Libertação, o grupo que frequentava era bastante aberto aos problemas da população excluída.

“Uma coisa puxa a outra e quando vê está mergulhada até o pescoço”, conta.

Quando Dom Paulo formou a Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, em 1972, por determinação estatutária eram necessárias as presenças de um operário e de uma mulher. O operário escolhido foi o metalúrgico Waldemar Rossi. A mulher foi Margarida.

No início, ela ficava inibida diante de nomes como Dom Paulo e os juristas Dalmo Dallari, José Carlos Dias e Mário Simas. Com o tempo, percebeu que conquistara a confiança do cardeal e transformou-se numa militante corajosa.

“Fui a primeira mulher e durante muito tempo era a única. Os advogados contavam sobre as pessoas que tinham procurado por eles para contar sobre as torturas, os desaparecimentos. Levei um susto, não tinha ideia daquilo. Ninguém sabia. Eu contava e até meu marido, amigos, ninguém acreditava. ‘Isso não é possível. Imagina’, diziam. E era possível”, recorda.

Além dos brasileiros, após os golpes militares na Argentina (1973) e no Chile (1976), perseguidos políticos dos dois países desembarcavam no Brasil apenas com a roupa do corpo. Procuravam Dom Paulo para pedir ajuda e sempre encontravam acolhimento. “Houve épocas em que o pátio da Cúria estava cheio de gente”, lembra Margarida.

O cardeal pediu para que alguém da Comissão de Justiça e Paz ajudasse nesse trabalho. Disponível para isso, Margarida começou o atendimento duas vezes por semana. Depois três. Em seguida todos os dias, de manhã e de tarde. Lá estava ela, mergulhada até o pescoço na resistência às ditaduras militares da América Latina.

“Os apelos eram muitos. Meu serviço era ouvir, fazer um resumo, depois encaminhar para os advogados da comissão e outros que tinham afinidade e aceitavam defender os perseguidos políticos”, relata.

A Comissão de Justiça e Paz protegia os perseguidos e seus familiares por meio da esfera jurídica e também oferecia acolhimento nos chamados anos de chumbo. Não era tarefa fácil. Muitos advogados não aceitavam defender presos ou perseguidos políticos. Médicos recusavam atendimentos.

“Os que aceitavam eram heróis. Arriscavam a vida, as carreiras”, elogia Margarida.

A socióloga tinha outras missões além de receber os que fugiam da repressão e encaminhá-los. Circulava pela Europa em busca de recursos para a comissão. Falava francês e, com uma carta de apresentação assinada pelo Cardeal, encontrava as portas abertas. Os recursos de países como França, Alemanha e Holanda e o trabalho voluntário dos integrantes garantiram o funcionamento da comissão.

Além disso, a Comissão de Justiça e Paz coordenou estudos sociológicos que resultaram em livros como “São Paulo 1975: crescimento e pobreza”; pesquisas sobre temas como os meninos moradores de rua; jornalismo; direitos humanos e prisões.

Foi um trabalho diversificado. Foram 25 anos ao lado de Dom Paulo, período que incluiu demonstrações de tratamento igualitário que até hoje emocionam Margarida.

Igualdade

“Ele sempre tinha a palavra certa para as ocasiões”, diz. “Tratava igual, não fazia diferença. Tinha muita confiança na gente. Em termos de igreja, onde o machismo é total, acho isso maravilhoso”.

Margarida representou o religioso várias vezes em congressos e seminários. Chegava e era quase um escândalo: Uma mulher representando o Cardeal. Onde já se viu isso? Para Dom Paulo, era natural.

Quando a pena de morte a dois presos políticos em Cuba foi divulgada, a socióloga chegou a tomar a iniciativa de divulgar uma carta de repúdio em nome do cardeal. Ele estava fora do Brasil e Margarida avaliou que, apesar da amizade dele com Fidel Castro, precisava se pronunciar em tom de protesto.

“Mandamos uma nota, protestando contra aquilo, em nome de Dom Paulo. Sem dizer a ele nem nada. Me disseram: você é ousada. Mas quando ele voltou, fui lá e disse: Me desculpe, mas politicamente era importantíssimo o senhor se manifestar. Ele respondeu: Fez muito bem. Quando achar que é necessário, pode fazer em meu nome”.

Ativa

Os últimos anos de Dom Paulo foram de reclusão, o que a amiga achava uma pena. “A gente precisa tanto do senhor…”, dizia nas visitas que fazia a cada dois meses.

Ele acreditava, segundo Margarida, que atrapalharia o atual arcebispo caso se pronunciasse. Afirmava já ter feito o seu papel. Recebia pessoas da igreja, inclusive os quatro bispos que foram seus auxiliares e nunca se afastaram. Mas era uma rotina restrita, escolha que a amiga respeitava, mas não quer para si mesma aos 93 anos.

“Quero morrer em pé, trabalhando”, diz.

Ela é presidente do Conselho Deliberativo da Conectas Direitos Humanos. Participa de movimentos de mulheres e é ligada à Secretaria Municipal de Direitos Humanos. Criou a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e segue defendendo a formação como a melhor alternativa para construir um mundo melhor.

“Tem que mudar as pessoas por dentro. Tem que ser uma vivência nas atitudes, nas posições. A educação para direitos humanos começa no berço. Se não muda as pessoas, não vai mudar a sociedade”.

Margarida é uma das instituidoras do Fundo Brasil, que elogia pelo apoio a projetos de organizações que atuam em todas as regiões do país e que conseguem grandes transformações nas vidas das pessoas. “Acho um trabalho lindo”, afirma.

*Texto escrito por Cristina Camargo – Assessora de Comunicação do Fundo Brasil de Direitos Humanos

+ sobre o tema

Porto Alegre: Sem terra é executado com tiro nas costas pela polícia gaúcha

Por: Clarissa Pont   O agricultor sem terra Elton Brum, 44...

Movimentos lamentam a morte de Dom Tomás Balduino

Fundador da CPT e do CIMI, o bispo da...

Justiça Global questiona Judiciário e Executivo Federal sobre prisões políticas no Rio

Organização também pede a realização de audiência pública conjunta...

para lembrar

Não somos defensores de bandidos!

Não somos defensores de bandidos! – Diálogo com a sociedade...

Creuza Maria Oliveira, presidenta da Fed. Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) ganha Prêmio Direitos Humanos 2011

Creuza Maria Oliveira, presidenta da Federação Nacional das Trabalhadoras...
spot_imgspot_img

Ministério da Igualdade Racial lidera ações do governo brasileiro no Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU

Ministra da Igualdade Racial, Anielle Franco, está na 3a sessão do Fórum Permanente de Afrodescendentes da ONU em Genebra, na Suíça, com três principais missões: avançar nos debates...

Conselho de direitos humanos aciona ONU por aumento de movimentos neonazistas no Brasil

O Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, acionou a ONU (Organização das Nações Unidas) para fazer um alerta...

Ministério lança edital para fortalecer casas de acolhimento LGBTQIA+

Edital lançado dia 18 de março pretende fortalecer as casas de acolhimento para pessoas LGBTQIA+ da sociedade civil. O processo seletivo, que segue até...
-+=