Configuração de racismo ainda gera polêmica

Arlindo Novais

Na terça-feira, um policial militar foi vítima de ameaça e desacato enquanto trabalhava na Ilha São João, em Volta Redonda, durante as comemorações de Carnaval. De acordo com informações registradas na 93ªDP (Volta Redonda), o PM foi chamado de “macaco” por um casal durante uma confusão na portaria do local. O jovem de 21 anos, e a mulher dele, de 20, chegaram a ser levados para a delegacia, onde prestaram depoimento e assinaram um termo se comprometendo a comparecer ao Juizado Especial Criminal de Volta Redonda quando forem intimados. Os dois vão responder pelo crime de injúria e ameaça em liberdade.

Segundo o delegado titular da 93ª DP (Volta Redonda), Antônio Furtado, o casal estava visivelmente embriagado, e como o policial estava em serviço, ele (delegado) entendeu que os suspeitos não praticaram crime de racismo, porque visaram ofender a autoridade, e não o indivíduo em si. Assim, o caso se configurou em desacato, um ato de desrespeito a um agente público que exercia a função naquele momento.

– O termo “macaco” está muito ligado à injúria por preconceito, mas no direito penal, nós temos que buscar o motivo de tudo. E os motivou o xingamento não foi o fato de o agente ser negro, mas sim a atuação dele enquanto Policial Militar, que estava impedindo a entrada deles, por estarem embriagados – explicou.

Ainda de acordo com o registro na 93ªDP, o policial percebeu que o suspeito estava discutindo com uma funcionária do local, e tentou apartar a confusão. 

– O casal teria chamado o PM de “macaco”, e o jovem também desafiou o policial para briga. O suspeito chegou a mandar o PM tirar a pistola que estava em sua cintura para que brigassem, ou seja, desacato e ameaça – explicou o delegado, informando que indiciou o jovem por desacato e ameaça, enquanto a mulher foi autuada apenas no crime de desacato.

A decisão do delegado em não autuá-los no crime de racismo gerou polêmica e críticas à legislação. No site do DIÁRIO DO VALE, vários internautas manifestaram a insatisfação com o caso por meio da área de comentários, questionando a ação da Polícia Civil e também da lei contra o racismo. 

Para esclarecer o tema, o DIÁRIO DO VALE ouviu especialistas e o próprio delegado para saber o que é, e o que não é racismo perante a lei.

Para o advogado, Antônio Henrique, a lei contra o racismo é interpretativa, apesar disso, não a vê como subjetiva.

– A lei do racismo é objetiva, pune e dá prisão, mas é uma questão de interpretação. Nesse caso, por exemplo, eu não vejo externar o racismo. Só configura crime quando a vítima se sente agredida ou descriminada de alguma forma. O termo ‘racismo’ é genérico, por isso se subtende, que são apenas crimes relacionados à cor da pele, etnia e etc. Na verdade é tudo que descrimine e humilhe a outra pessoa – definiu.

Já para o advogado criminalista, Misael Júnior, as pessoas ainda têm dificuldades para entender o que caracteriza o crime de racismo, além de ser uma lei que é aberta a manobras jurídicas.

– Hoje em dia essa lei está sendo mais usada, mas as pessoas ainda não conhecem e acham que tudo é racismo. Nesse caso, o delegado teve uma enorme felicidade já que a pessoa ofendida era um Policial Militar, então por isso o crime foi o de desacato. No meu entendimento, essa lei tem duas correntes e abre brecha para tudo, por isso ainda é muito complicada – declarou.

Injúria racial x racismo

Na opinião do delegado Antônio Furtado, a falta de conhecimento técnico faz com que algumas pessoas não saibam diferenciar determinadas atitudes ofensivas do crime de racismo.

– O termo “macaco” induz as pessoas a pensarem que é injúria por preconceito ou até mesmo racismo. Muitas vezes as pessoas opinam sobre o que não entendem e se deixam levar pela paixão, coisa que uma autoridade policial não pode fazer. Nós estudamos e nos qualificamos durante alguns anos para saber exatamente o que acontece em cada caso. Para cada situação é feita uma análise pelo delegado em cima da lei e de um fato concreto – comentou.

Furtado esclareceu que existe diferenças entre os crimes de injúria racial e racismo. Segundo ele, a injúria racial ocorre quando são ditas ou expressadas ofensas a determinados tipos de pessoas, tendo como exemplo chamar um negro de “macaco”, alguém que não toma banho de “fedida” entre outros. Nesses casos, quem proferiu o insulto será julgado por injúria racial, em que há a lesão da honra subjetiva da vítima, ou seja, a autoestima. A acusação de injúria racial permite fiança e tem pena de no máximo três anos.
– A injúria não está ligada a mentira, pode até ser uma característica verdadeira, mas se for ofensiva à autoestima da pessoa, ela é punível. O direito penal tutela o direito da pessoa de não ser ofendida – declarou.

Tão grave quanto à injúria racial, o crime de racismo está previsto em lei, e determina a igualdade racial e a criminalização da intolerância religiosa. Furtado diz que para ser considerada como racismo a ação tem que impedir a pessoa de praticar um direito que ela tenha por motivos raciais ou étnicos.

– Os crimes de racismo não são propriamente condutas ofensivas e sim obstativas. Ou seja, toda a vez que há uma segregação, que se impede alguém a fazer algo devido a alguma característica específica, seja por ela ser negra, idosa ou deficiente, por exemplo. Nessa hipótese, sim, é um crime inafiançável e a pena pode chegar até cinco anos de prisão, já que são crimes de segregação – explicou.

Sem levar desaforo para casa

De acordo com o Antônio Furtado, em Volta Redonda é muito comum as pessoas denunciarem os chamados delitos contra honra – calúnia, difamação e injúria.
– Em Volta Redonda, as pessoas costumam trazer muitas situações de calúnia, difamação e injúria para a delegacia. Eu digo que na Cidade do Aço, as pessoas não levam desaforo para casa, mas trazem para a delegacia – disse.

Segundo levantamento da 93ªDP, só no ano passado, em um período de três meses – entre outubro e dezembro – mais de 200 registros foram feitos em relação a esse tipo de crime, uma média de quase 70 ocorrências por mês, o que para o delegado é um número muito alto.

– De todas as delegacias em que trabalhei nunca vi um número tão alto quanto esse de Volta Redonda. É necessário que as pessoas percebam que mesmo nas discussões não se pode falar tudo o que quer. Porque se ela de fato falar algo que se adeque a esse tipo de injúria mais grave, que é essa por preconceito e a vítima tiver provas disso, a pessoa vai ser presa em flagrante e só saíra depois de paga uma fiança determinada pelo delegado – salientou.

O delegado ainda reforçou que a injúria por preconceito é tão grave quanto um homicídio culposo – quando não há intenção de matar -, porque a pena é a mesma, até três anos de prisão. 
– Se alguém ofender uma pessoa em uma situação que fica clara que o conteúdo era atingir a honra, o autor está sujeito a uma prisão em flagrante com a mesma pena de um homicídio culposo que é de até três anos de reclusão. As pessoas tem que ter cuidado em relação a isso, porque cabe prisão e se for necessário elas vão ser presas por esse delito – garantiu.

Denúncias e investigações

Para denunciar um crime seja de racismo ou injúria racial, a vítima deve primeiramente registrar um boletim de ocorrência em uma delegacia e, em seguida, procurar um advogado para cuidar do processo, mas não é obrigatório um advogado para poder dar entrada ao processo de discriminação racial.

Se a discriminação ocorrer no ambiente de trabalho, a vítima pode procurar o Ministério Público do Trabalho. Se a discriminação não se referir especificamente a uma pessoa, pode procurar o Ministério Público do Estado.

– Qualquer pessoa que venha a sofrer uma injúria tem o direito de vir a delegacia e tem que denunciar o fato. Para nós, os crimes contra a honra tem que ser registrados e investigados, no entanto, ninguém pode ser punido sem prova, e a autoridade policial vai levar tudo em consideração. Se não houver provas fica mais difícil, pois, fica a palavra de um contra o outro. Mas se o suposto injuriador já tem várias injúrias praticadas contra as pessoas, aquilo já é um elemento que vai me deduzir a acreditar que de fato, ele praticou a injúria. Por isso, o delegado tem que se cercar de todas as provas idôneas possíveis – afirmou.

Fonte: Diário do Vale

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