Conheça os ‘Joaquins Barbosa’ de Bauru

Veja história de bauruenses que, a exemplo do novo presidente do STF, precisaram vencer o preconceito

Por: PATRÍCIA LACERDA

Estudo e força de vontade. São essas as palavras que definem a trajetória de Joaquim Barbosa, o novo presidente do STF (Supremo Tribunal Federal) – cargo que ainda não havia sido ocupado por um negro. Filho de um pedreiro e de uma dona de casa, a história dele é marcada pela sua principal batalha, que serve de exemplo para todos: a vitória contra os preconceitos social e racial.

Coincidentemente, no mês da Consciência Negra, comemorado em novembro, o plenário o elegeu para substituir Ayres Britto – aposentado neste mês. Aos 58 anos, Barbosa atuou quase 20 anos como procurador do MPF (Ministério Público Federal) e ganhou notoriedade como relator no episódio mais polêmico da política: o mensalão.

Até chegar nesse patamar, o menino negro e de origem pobre já morou de favor na casa de parentes, estudou em escola pública e trabalhou como faxineiro. Mas, nunca deixou de acreditar em seu potencial. Foi através da intensa vida acadêmica que começou escrever sua história.
Hoje, Barbosa fala quatro línguas (francês, inglês, alemão e italiano) e traz no currículo mestrado e doutorado em direito público pela Universidade de Paris, mestrado em direito e estado na Universidade de Brasília e é professor licenciado da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Gente daqui / Assim como Joaquim Barbosa, cinco grandes nomes de Bauru também se destacam pela sua formação e os obstáculos que enfrentaram pela cor de sua pele. Álvaro de Brito (coordenador da Defesa Civil), João Braulio (advogado liberal do Conselho Municipal da Comunidade Negra), Juarez Tadeu de Paula Xavier (docente da Unesp e coordenador do Núcleo de Estudos e Observação em Economia Criativa ‘NeoCriativa’), Sebastião Clementino da Silva– conhecido como Macalé – (professor na Universidade Sagrado Coração e presidente do Sindicato das Escolas Particulares de Bauru e Região) e Roque Ferreira (vereador e analista de Gestão Empresarial Sênior).

Ao serem questionados sobre o racismo, os cinco ressaltaram a discriminação a partir contexto histórico, da época dos escravos, e que ainda há resistência na atualidade. “No Brasil, é algo pernicioso, condenado pela constituição, reproduzido no cotidiano da sociedade, em diversos níveis e condições sociais, e que atinge de forma negativa o conjunto da sociedade, afrodescendentes ou não”, opina Xavier.
Para o vereador Roque, o preconceito ainda persiste e é muito forte.

Ele acredita que basta verificar as relações cotidianas, e principalmente quando se disputa espaço nesta sociedade de relações muito competitivas. “Dramático chegarmos a um ponto de termos que discutir este assunto sob o ponto de vista racial e da cor da pele. Isso demonstra exatamente a crueldade do ‘racismo brasileiro’, num país onde 52,5% da população é classificada como negra. Esta é a importância, refletirmos porque isso ocorre. Um negro estar em um espaço reservado para os extratos mais aristocráticos da população, que por consequência é composto por brancos”, afirma o parlamentar.

Confira abaixo o pensamento destes nossos “Barbosas” que, apesar das dificuldades impostas pelo preconceito, conseguiram vencer e hoje são exemplos para a sociedade bauruense.

Álvaro de Brito

56 anos (coordenador da Defesa Civil)
-Formado em geografia
-Participou da criação da Defesa Civil no estado
-Recebeu certificado internacional pelo seu trabalho
-29 anos de carreira

Minha família é de ferroviários e tivemos alguns problemas financeiros nesta época. Mas nunca deixei de ter uma infância saudável. Eu não sofria preconceito, pois eu não sabia o que era isso. Minha vó era espanhola e me contava histórias de meu avô que foi escravo. E hoje, com 100 anos da abolição da escravidão, não foram suficientes para recuperar esse processo histórico.

Até hoje passo por algum tipo de constrangimento. Nada escancarado. Por exemplo, recentemente atendi uma ocorrência de um incêndio e percebi que o morador fez perguntas para ver se era eu mesmo o coordenador. Antes de eu trabalhar na Defesa Civil, trabalhei como locutor e passei por algo parecido. Atendi uma pessoa que não acreditava que eu era o locutor.

Sinto que qualquer tipo de preconceito vem com a falta de oportunidade. Mais de 5 milhões de negros no Brasil pagam pela dívida do passado, uma resistência cultural que vai durar mais alguns anos na minha opinião.

Joaquim Barbosa está fazendo história em nosso país. Mas, se parar pra pensar quantos anos levou para chegar um negro neste cargo? Ainda falta uma evolução cultura, pois nossa sociedade é criada com rótulos. E não é só a questão da nossa cor, acredito que o preconceito maior é o econômico/social.

Acho que cotas são válidas em nossa sociedade. Acredito que não é totalmente eficiente. Sou da opinião de um outro método para ingressar na faculdade pública. Sou contra esse padrão de vestibular, porque há questões que acabam sendo decoradas e não necessariamente aprendidas. Avaliação do aluno deveria ser feita de outra forma, ao longo do ensino médio.

João Bráulio

45 anos (advogado)
– Advogado liberal
– Atua perante o Conselho Municipal da Comunidade Negra, perante o Conselho Municipal de Direitos Humanos e na Ordem dos Advogados em Bauru

Quero acreditar que minha infância, minha adolescência, foram normais. É bem provável, que por uma certa ingenuidade, somente a posteriori constatei que as oportunidades não são as mesmas para todos.

O preconceito ocorreu a partir do momento no qual me identifiquei com afrodescendente. No período escolar, antigo primário, por exemplo. Por muitos fui tratado no mínimo com desconfiança e repudio. Justifico, não tenho a cútis negra, mas afirmo sou filho de negra.

Ato de violência, subjulgamento, exercício arbitrário do poder.

O reconhecimento da competência (superação) do indivíduo em uma nação de indivíduos desiguais que recebem tratamentos desiguais.

Não sou a favor. Porém, creio ser um instrumento que oportuniza o debate perante a sociedade brasileira, para fins da construção da identidade nacional, no sentido de valorar os desiguais perante seus direitos e obrigações.

Juarez Tadeu da Paula Xavier

53 anos (docente da Unesp e coordenador do NeoCriativa)
-Jornalista formado pela PUC/SP
-Mestre e doutor pelo programa de pós graduação pela Prolam/USP nas linhas de comunicação e cultura

Sou filho de uma empregada doméstica. Minha mãe era de Minas Gerais. Meu pai era baiano, e trabalhou como caminhoneiro. Os dois tinham formação primária. Nasci e fui criado na zona Norte de S. Paulo, Vila Mazzei. Criado pelas minhas tias; minha mãe dormia no emprego. Comecei a trabalhar aos dez anos, em uma banca de jornal, o que me fez apaixonar pelo jornalismo.

Já fui vítima de preconceito – pré-julgamento sobre minha capacidade e competência -, de discriminação – segregado física, cultural e social -, e do racismo – vítima de violência racial, simbólica e física. Reagi a todas essas situações, em diversos momentos da minha vida, da infância a vida adulta. Todos obstáculos por conta da cor da pele foram enfrentados e superados, com dignidade, responsabilidade e coragem. Legados pela minha mãe e ensinados à minha filha, Bolaji, de 14 anos. No Brasil, algo pernicioso, condenado pela Constituição, reproduzido no cotidiano da sociedade, em diversos níveis e condições sociais, e que atinge de forma negativa o conjunto da sociedade.

Uma referência simbólica positiva para as crianças negras – que não se veem de forma positiva nos meios de comunicação. Espero que o presidente do Supremo Tribunal Federal seja meu irmão na luta direitos inalienáveis dos afrodescendentes pela igualdade.

Em diversos países do mundo esse mecanismo foi adotado, como fator de nivelamento de grupos em condições vulneráveis. Os resultados são contraditórios, mas em larga medida, o sistema permitiu a redução do fosso entre os mais ricos e os mais pobres na sociedade. Os Estados Unidos da América são um exemplo disso.

Roque Ferreira

57 anos (vereador)
-Ferroviário e trabalha na América Latina Logística, exercendo a função de Analista de Gestão Empresarial Senior
-Formado na Fundação Educacional de Bauru na turma de comunicação social.

Sou filho de uma pernambucana de Garanhuns e de Mineiro (negro) de Andradas. Sou o caçula de quatro filhos. Nasci em Birigui/SP e minha família veio para Bauru no final de 1956. Fomos morar na Vila Quágio. Ali tive uma infância bem cuidada, assim como outras crianças da rua. Meu pai foi militar e quando nasci ele já era ferroviário.

Todos os negros já sofreram e sofrem ainda com o racismo. Na juventude a forma mais dolorosa era o preconceito é o racismo da polícia. Mas tocamos em frente sem aceitação obsequiosa. Tive a felicidade e a honra de conviver e partilhar com homens e mulheres forjados com as ligas mais nobres, que muito me ensinaram nesta caminhada.

O preconceito racial tem origem no racismo, esta outra face da moeda chamada capitalismo “Steve Biko”. O preconceito racial ainda é muito forte. Podemos verificar isso nas relações cotidianas. Também podemos verificar as marcas do preconceito nos serviços públicos, no direito à cidade e nas políticas públicas que são implementadas, inclusive em Bauru.

Dramático chegarmos a um ponto de termos que discutir este assunto sob o ponto de vista racial e da cor da pele. Isso demonstra exatamente a crueldade do “racismo brasileiro”, num país onde 52,5% da população é classificada como negra. Esta é a importância, refletirmos porque isso ocorre.

Por princípio defendo vagas para todos. As cotas têm como eixo central as políticas que classificam a população baseado no conceito de raças. É um conceito reacionário, que gera uma política pública que não muda o status quo do sistema. De forma prática abre a possibilidade para que uma minoria que se declara “negro” entre na universidade.

Sebastião Clementino da SIlva (Macaé)

65 anos (professor na Universidade do Sagrado Coração e Presidente do Sindicato das Escolas Particulares de Bauru e Região)
-Licenciado em Geografia, Bacharelado como Geógrafo e licenciado em Pedagogia

Na minha infância, morava no Jardim Bela Vista, onde o passatempo era jogar bola na rua e nos campinhos de terra que existia naquela época. Joguei no Amado, fiz atletismo com o Cabo Alcides, participei dos Jogos Abertos de 1970 nas modalidades de 1,5 mil e 800 metros, revezamento 4 x 4, além de disputar vários torneios brasileiros com medalhas.

É até incrivel falar que não sofri preconceito, mas tenho certeza que existe no Brasil, muito mais do que nos EUA, pois somos mais da metade da população e não conseguimos galgar os maiores postos desse país. Até nas propagandas existe (preconceito) racismo, pois todas apresentam loiras em suas estampas. Até parece que estamos na “Suécia”.

O Brasil é mais preconceituoso do que a antiga África do Apartheid , pois lá com uma população inferior a nossa, tem mais negros na Universidade, como também nos Estados Unidos que tem 11% de população negra e elegeu pela segunda vez um Negro para comandar a maior Nação do Mundo, aqui no Brasil na política nào passamos de 4% de negros.

Ter Joaquim Barbosa na alta corte brasileira significa um grande marco na trajetória dos negros brasileiros. Mas lembre-se que o negro nesse país precisa ser “super negro” para poder galgar um espaço nessa sociedade. O Joaquim demonstrou para a nossa raça (etnia) que ainda vamos comandar esse país “dito democrático na questão racial”.

Sou 100% a favor. É uma retratação dos quatro séculos passados. A cota é um resgate para tentar igualar os negros na sociedade. Trabalho em uma escola particular e vejo que há um aumento no número de pessoas negras buscando a universidade, que é um caminho para se tentar elitizar os negros. Quem é contra não sabe a história dos negros no Brasil.

 

 

 

Fonte: Dia a Dia 

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