Tem sido crescente a minha preocupação com a concentração de riqueza e o combate às desigualdades no Brasil. Já me posicionei publicamente a favor da taxação progressiva dos chamados super-ricos por meio de uma reforma tributária que seja amplamente discutida com a sociedade.
Tenho atuado nessa causa articulando organizações sociais, pesquisadores acadêmicos e poder público. Nessa trajetória, estou convicta de que um dos caminhos eficazes para reduzir as disparidades estruturantes em nosso país é um sistema que atue como instrumento de equilíbrio, protegendo os que têm menos e fortalecendo a responsabilidade dos que mais podem contribuir —o oposto do que temos hoje.
Recentemente, o governo federal deu um passo importante para corrigir essa distorção ao propor a isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5.000 e o aumento da alíquota para os mais ricos. Em que pese a ampla repercussão da proposta, o debate sobre a reforma tributária não deve ser reduzido a uma questão fiscal ou de concessão de benefícios.
O que está em jogo é a construção de um sistema mais distributivo e justo. Durante anos, a regressividade do nosso sistema permitiu que os mais ricos pagassem alíquotas menores em proporção à sua renda, aprofundando a desigualdade. Agora, o governo federal pretende complementar as faixas e o mecanismo do imposto atualmente aplicado, que pode resultar em alíquotas reais para os mais ricos até menores do que as aplicadas sobre os mais pobres. A nova proposta caminha na direção certa ao defender a implementação de um imposto mínimo para a população com maior poder aquisitivo, promovendo um modelo efetivamente progressivo.
Nesse contexto, a taxação mais elevada para os que possuem maior capacidade contributiva não deve ser vista como uma punição, mas como um passo essencial para um ambiente econômico mais equilibrado. Da mesma forma, a isenção do Imposto de Renda para as camadas mais baixas não é um simples benefício —é um voto de confiança na capacidade de ascensão social dessas pessoas. Um sistema progressivo permite que aqueles que começam a ganhar mais passem a contribuir gradualmente, sem que sejam tributados da mesma forma que os super-ricos.
Mas, se um primeiro passo da justiça tributária pode ter sido dado com essa proposta do governo, cabe lembrar que, sozinha, não será suficiente para transformar a estrutura de desigualdade do país. Os privilégios, infelizmente, ainda fazem parte do funcionamento de muitas das nossas instituições. Do ponto de vista da construção coletiva da sociedade brasileira, a lógica da excepcionalidade para seguir regras e o favorecimento de alguns em detrimento de outros ainda resiste a mudanças. Além da reforma tributária, é preciso seguir transformando essa cultura do privilégio.
No âmbito fiscal, que concentra parte do debate, são muitos os pontos em que essas mudanças precisam acontecer. Um exemplo são os supersalários no setor público. Estudos recentes do Movimento Pessoas à Frente (MPF) revelam que, em 2023, as despesas acima do teto constitucional, conhecidas como “penduricalhos”, custaram mais de R$ 11,1 bilhões aos cofres públicos. Os supersalários de uma minoria representam um sistema de privilégios incompatível com a realidade da esmagadora maioria dos brasileiros. O último projeto de lei dedicado a mudar essa realidade acabou sofrendo muitas alterações e pode servir mais como a consolidação de privilégios do que para sua superação. É nítida a dificuldade de nossas instituições de corrigirem esses tipos de distorções.
O caminho para um sistema econômico mais justo e ético passa pela desconstrução da ideia de privilégio como algo desejável. Pelo contrário, devemos incentivar que a verdadeira riqueza esteja na construção de uma sociedade em que a realização pessoal não se faça à custa do bem-estar coletivo, mas sim em harmonia com ele. É dessa forma que se constrói um país mais justo e sustentável.
Maria Alice Setubal (Neca) – Doutora em psicologia da educação (PUC-SP), é socióloga e presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal