Por: Maria Auxiliadora de Paula Gonçalves Holanda
Introdução
Algumas reflexões sobre o que nos revelam os dados – Os quesitos raça/cor ganham espaço nas pesquisas.
O Brasil é um país de grandes contrastes sociais e desigualdades resultantes de um longo período de colonização e exploração das populações indígenas e negras. Ainda hoje as conseqüências do regime escravocrata persistem mostrando estatísticas nas quais essas populações aparecem em grandes desvantagens em relação aos brancos. Essas constatações hoje já começam a ser aceitas pelos governos, e medidas de equalização dos quadros de desigualdades começam a serem tomadas.
É necessário e urgente que a garantia dos direitos fundamentais como saúde, educação e trabalho, seja efetivada com justiça, de forma que as camadas desfavorecidas da sociedade brasileira possam ter um aumento significativo de qualidade de vida. Algumas ações governamentais têm sido implementadas nesse sentido, dentre as quais podemos citar a obrigatoriedade de 50% de mulheres nas candidaturas para cargos públicos eletivos(1), e políticas de trabalho direcionadas para portadores de deficiências físicas(2).
Os movimentos sociais como um todo, sobretudo os feministas, negros, e de jovens, tiveram uma participação decisiva nessas ações desde o momento inicial de pressão política, passando pela sua elaboração, execução e monitoramento. A criação de secretarias governamentais para tratar especificamente dessas políticas é uma prova concreta da mobilização e força dos movimentos sociais e da sociedade civil de uma forma geral.
Embora alguns avanços sejam identificados, a base das desigualdades persiste. Conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD, 2006), a população entre 7 e 14 anos do Norte-Nordeste continua apresentando as menores taxas de escolarização. As mulheres na idade entre 5 a 17 anos apontam um percentual maior de freqüência à escola que os homens, respectivamente 92,4% para 91,9%, sendo que o aumento ocorreu em todas as regiões. No Norte-Nordeste a taxa de analfabetismo das mulheres foi menor que a dos homens. As mulheres possuem em 2006, em média, mais anos de estudo completos que os homens. A participação das mulheres no mercado de trabalho e na freqüência à universidade também cresce em relação aos homens, no entanto o tipo de ocupação no trabalho e os salários são inferiores aos dos homens, o que evidencia a persistência das desigualdades.
Quando nos referimos aos itens “cor” ou “raça”, os dados da PNAD (2006) atestam que, dos 15 milhões de analfabetos brasileiros mais de 10 milhões são pretos e pardos, apresentando mais que o dobro na taxa de analfabetismo em relação aos brancos, ou seja, 14% contra 6,5% para os brancos. Já com relação à freqüência à universidade, os brancos correspondem a 56%, e pretos e pardos 22%, mas esses dados são verdadeiramente alarmantes quando passamos a perceber qual a porcentagem de pretos e pardos que conseguem concluir a graduação em relação aos brancos. Da população de 25 anos ou mais que concluíram a graduação em 2006, temos um total de 8,6%. Desses 8,6% que concluíram; 78% são brancos, 16% pardos, e apenas 3,3% de negros.
Estas estatísticas nos mostram claramente a necessidade e urgência de ações afirmativas e cotas que garantam o acesso e permanência da população negra na universidade. Das políticas de ação afirmativa já implementadas, o sistema de cotas foi o que mais envolveu a opinião pública e mobilizou setores da sociedade civil. Muitas universidades estaduais e federais(3) já iniciaram políticas e programas de democratização do acesso e permanência de índios e negros, cada uma de acordo com as suas especificidades regionais e com embates políticos diferenciados.
Raça e relações raciais
Muitos desafios têm contribuído para o avanço dos estudos sobre as relações raciais no Brasil, e estes se apresentam em conjunturas sócio-históricas diferentes, de acordo com o dinamismo das relações que se constroem a cada época. Portanto, dado a brevidade de nosso texto, destacaremos apenas alguns desafios mais pertinentes à compreensão de nosso objeto. Queremos no entanto destacar a influência que o pensamento cientifico opera sobre o imaginário social e de como as idéias racistas ainda hoje repercutem.
Hasenbalg (1979) faz um interessante comentário crítico às teses de Florestan Fernandes (1965) apresentadas em seu texto: “Integração do Negro na Sociedade de Classes”. O primeiro autor fundamenta sua crítica ao segundo com base, sobretudo, em Stanislav Andreski (1969 apud HASENBALG, op. cit., p. 76), quando este afirma: “Uma vez que uma superposição bem definida de raças passa a existir, cria-se uma situação em que é bastante racional para seus beneficiários tentar perpetuá-la”.
O autor não concorda com Florestan Fernandes (1965, p. 75) quando este considera que “[…] parece provável que as tendências dominantes levarão ao estabelecimento de uma autêntica democracia racial.” (FERNANDES apud HASENBALG, 1979, p. 75). De acordo com o que apresenta Hasenbalg (op. cit.), Fernandes (op. cit.) considera que, uma democracia racial autêntica implica que negros e mulatos devam alcançar posições de classe equivalentes àquelas ocupadas por brancos, o que nos parece correto. Ainda de acordo com o autor, Fernandes (op. cit.) acreditava na gradativa transformação das relações raciais no Brasil, à medida que o modelo econômico fosse sofrendo mudanças de um perfil arcaico para outro mais moderno e democrático. Este autor acreditava que os comportamentos preconceituosos e racistas acabariam por desaparecer, o que na verdade não ocorreu, pelo contrário, as desigualdades persistem, em grande parte em conseqüência da discriminação, do preconceito, das idéias racistas que continuam vivas na contemporaneidade.
Com base nas posições de Hasenbalg (1979) no que se refere à permanência de uma sociedade desigual, mesmo após a abolição, e considerando os efeitos perversos e ainda permanentes do longo período de escravidão, situaremos nosso texto no momento mais recente das discussões sobre relações raciais. Atualmente busca-se com as políticas de ação afirmativa, se busca uma justiça racial concreta, da forma como pensou Fernandes (1965), ou seja, onde negros ocupem status social equivalente aos brancos.
Estudos de relações raciais no Brasil
Guimarães (1999) destaca que as primeiras compreensões de raça estavam relacionadas às características físicas das populações nativas dos vários continentes. Os estudiosos atribuíam qualidades morais, intelectuais e psicológicas de acordo com os atributos físicos das populações. De acordo com esse autor, estas teorias racistas sustentaram aspirações imperialistas e geraram grandes tragédias o que levou os cientistas a negarem este conceito de raça. Houve uma substituição do termo raça por “etnia” (Ibidem).
Conforme declara Telles (2003) a respeito das teorias racistas do século XIX surgidas na Europa e amplamente assimiladas e divulgadas no Brasil, a idéia de raça é conceitual e não um fato biológico. Embora as teorias de superioridade da raça branca, que ganharam um status científico no século XIX, tenham sido desacreditadas, elas continuam firmemente enraizadas no pensamento social (Ibidem). Para Pessoa (1996), o conceito de raça é comparativo, e para se reconhecer uma raça é necessário estabelecer um contraste com outra semelhante ou diferente. A esse respeito o autor traz sua compreensão com base no conceito de raciação, conforme podemos ver a seguir:
Como a raciação é um processo longo e contínuo que vai produzindo raças dentro de raças, o grau de diferença entre as raças varia. Comparada com a população alpina, a população nórdica é uma raça menor (não muito distinta), mas, em relação aos pigmeus africanos, é uma raça maior (muito diferente). (Ibidem, p. 30).
O autor traz em seu texto além de noções de miscigenação e de raças modernas, um perfil da doutrina racista e alguns dos postulados do racismo(4), dentre os quais ressaltamos os seguintes:
– As raças puras são superiores umas às outras e todas são superiores às miscigenadas.
– Para o bem da humanidade, as raças superiores devem dominar as inferiores e usá-las para funções subalternas (Ibidem).
Ainda de acordo com Pessoa (1996, p. 30), abolir a palavra raça em virtude do racismo e de suas graves conseqüências, não foi uma boa iniciativa, pois “[…] não é lutando contra palavras que venceremos preconceitos”.
Costa (1989) apresenta uma compreensão distinta da de Pessoa (op. cit.) com relação à importância do uso do termo raça. O autor considera que até os anos 30 do século XX o conceito biologizante de raça serviu para hierarquizar segmentos da população. A partir dos anos 70, o conceito ganha outra importância. O autor apresenta as oscilações desse conceito na história, e ressalta que:
Quando, nos finais dos anos 70, o movimento negro retoma o conceito raça com um sentido político, opera-se, portanto uma inversão semântica fundamental na categoria usada historicamente para subjugar negros e outros não brancos. Não se trata, contudo, de um racismo invertido, como se grupos negros quisessem afirmar alguma distinção biológica essencial ou sua superioridade relativamente aos não negros. O que se tem é uma estratégia política de delimitação e mobilização dos grupos populacionais que, em virtude de um conjunto de características corporais, continuam sistematicamente discriminados. (COSTA, 1989, p. 151).
Com relação à “luta contra palavras para vencer preconceitos” da qual Pessoa (1996) discorda, podemos afirmar que as palavras não são vazias, e ganham sentidos dentro de um contexto sócio-histórico e político. A academia -lugar por excelência da elaboração de conceitos- trabalha manipulando-os segundo os seus interesses. Portanto, é necessário refletir sobre quem detém o poder intelectual e político de disseminar o conhecimento e fabricar conceitos.
O movimento negro passou a utilizar o termo raça como instrumento político para reafirmar a existência do racismo no nosso país, fortemente enraizado nas instituições e nas formas como estas trabalham as relações no cotidiano. As palavras que denotam o preconceito, os estereótipos e a discriminação, demonstram o perfil racista do Brasil. As palavras fazem parte de uma ideologia pouco percebida, simbólica e discursiva, contra a qual a luta é também com palavras(5). O lugar da palavra, da escola e da universidade tem grande responsabilidade sobre a continuidade dos pensamentos racistas.
Nascimento (2003) considera que raça é um conceito que traz implícito em sua compreensão dimensões culturais e históricas, justificando a necessidade de se abandonar o uso do temo “etnia”, conforme explicação a seguir:
Já que a noção de raça como origem e ancestralidade incorpora as dimensões de história e cultura sem remeter ao essencialismo biológico, perde o sentido a proposta de sua substituição pelo eufemismo “etnia”. Ademais, no processo de resistência à discriminação, constata-se a necessidade de reconhecer as realidades sociais criadas a partir dos critérios discriminatórios. Como lutar contra o racismo se negarmos a existência das “raças” e, portanto, da discriminação racial? (p. 50).
A autora supracitada considera que, entre racismo e etnicismo, o termo derivado de raça é imediatamente identificado com o fenômeno discriminatório e, portanto, pode ter capacidade mobilizadora. “Etnia”, na visão da autora, é um termo que não atinge o imaginário social, e nesse caso, seria uma luta com arma discursiva impotente, segundo o pensamento de Pessoa (1996).
O ideal de branqueamento no Brasil
Antes da criação do mito da democracia racial no Brasil(6), que considerou a convivência entre as três raças formadoras do povo brasileiro como algo positivo, existia no Brasil um outro ideário amplamente divulgado pelas ciências médicas, jurídicas, filosóficas, e outras, com fortes influências das idéias de eugenia divulgadas na Europa(7). Esse ideário configurado nas teorias racistas do século XIX(8) consistia na crença de que, a miscigenação era uma aberração, uma verdadeira degenerescência da espécie humana. O ideal seria que as raças fossem puras. As raças inferiores, as negras principalmente, não poderiam se misturar às superiores, e os brancos que cometessem essa imprudência eram castigados. A mistura de raças originaria um ser humano inferior.
Da mesma forma como interessou a uma elite branca esse pensamento, a reinterpretarão positiva de miscigenação alardeada de forma muito inteligente nos anos 20 e 30 também assegurou a continuação do domínio dessa elite sobre a população negra e índia. Skidmore (1976, p. 192) esclarece que “[…] os anos 20 e 30 no Brasil viram a consolidação do ideal de branqueamento e sua aceitação implícita pelos formuladores da doutrina e pelos críticos sociais”.
A dificuldade dos negros, de se reconhecerem como tal, e de perceberem como se tornam negros está implícita na construção científica da idéia de que a miscigenação com brancos melhoraria as supostas qualidades inferiores da raça negra. Os efeitos dessas teorias têm reflexo até o momento atual em nossa sociedade, atingindo as dimensões do desejo de crianças, jovens e adultos de se aproximarem ao máximo dos valores cultivados pelos brancos.
Reiteramos que a escola enquanto instituição por excelência, da palavra, da comunicação, da construção da sociabilidade entre crianças, jovens e adultos, figura como uma das principais mantenedoras desse pensamento racista. Na escola são lidos os textos que foram produzidos por esses escritores, dentre eles um que, até hoje é leitura central nas escolas: Monteiro Lobato, escritor excelente do ponto de vista da técnica, da criatividade, mas que apresenta para os professores questões para serem refletidas com os leitores infantis e juvenis. Apresentamos essa reflexão, pautada nos estudos de Skidmore (1976), quando este coloca a importância que tiveram os escritores na formulação desses ideais de branqueamento. Ele cita a participação de muitos estudiosos(9) que elaboraram idéias dessa política de branqueamento e coloca Gilberto Freyre como um dos principais cientistas na construção dessas idéias.
Por traz da idéia de uma convivência harmônica entre as raças, parecia existir o propósito de eliminar pouco a pouco a população negra tida como inferior, e desta vez, não pela violência, nem pelos maus tratos próprios da escravidão, mas por um princípio científico amplamente divulgado e inculcado no imaginário social. De que forma combater idéias racistas e todas as formas de preconceito, estereótipos e discriminação, se todos acreditavam no seu desaparecimento, sendo assim tidos como idéias arcaicas, como coisas do passado?
Conforme Skidmore (1976), o escritor Monteiro Lobato(10) teve uma ascensão expressiva no cenário da literatura brasileira da época devido à divulgação desse ideal de branqueamento através de seus livros e de matérias jornalísticas. Em carta que Lobato escreveu a um amigo podemos perceber a dimensão dos valores diferenciados que este escritor atribui às raças:
Num desfile, à tarde… perpassam todas as degenerescências, todas as formas e má-formas humanas – todas menos a normal… Como consertar essa gente? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui, na sua inconsciente vingança! Talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas que intensamente se injetam de sangue europeu. Os americanos salvaram-se da mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira, mas só em certas classes e certas zonas. No Rio, não existe. (LOBATO, 1944 apud SKIDMORE, op. cit., p. 199).
Andréas Hofbauer (2003), em seus estudos sobre as bases ideológicas do racismo brasileiro, confirma que o racismo que ainda hoje persiste nas relações sociais é fruto não só de uma construção científica, mas também jurídica. Havia uma cobertura legal, reforçando a legitimação das práticas de branqueamento. Hofbauer (op. cit.) citando João Batista Lacerda (1912) afirma que:
[…] ainda no Estado Novo, Getúlio Vargas justificaria a assinatura de um decreto-lei (1945) que devia estimular a imigração européia com as seguintes palavras: “Há necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características básicas mais desejáveis de sua ascendência.” (LACERDA, 1912 apud HOFBAUER, op. cit., p. 89).
Parece assim ficar claro que, as construções do conceito de raça e das idéias sobre racismo estão envolvidas em um processo político ideológico no qual os interesses de uma minoria branca dominante se sobrepunha.
Para Costa (2002, p. 44) “[…] não se trata de uma ideologia racial, mas de uma ideologia nacional(11), com múltiplas dimensões.” O autor considera que, em sua dimensão política, a ideologia construída na nação brasileira a partir de 1930 assimilou o modelo francês. Ele declara que a ideologia da mestiçagem comporta as dimensões de gênero, social, cultural, e racial. Sobre a dimensão de gênero implícita nas idéias de mestiçagem, e afirma:
Tanto no trabalho de Freire quanto no âmbito do esforço consistente de institucionalização de uma ideologia nacionalista de institucionalização de uma ideologia nacionalista no Estado Novo, reifica-se a imagem da mulher sem subjetividade própria e sem vida cívica e políticas autônomas; nesse construto, a mulher realiza-se e se completa enquanto objeto do desejo masculino. (Ibidem, p. 44).
É interessante observar como as artes, ciências e letras contribuíram para fortalecer esse pensamento com relação a um tipo feminino sensual e objeto do desejo masculino. Ficaram célebres os personagens femininos criados pelo escritor Jorge Amado, traduzido para muitas línguas e levado para o cinema e as telenovelas. A música, a pintura, e a poesia, também contribuíram para formatar uma imagem de mulher brasileira, “tipo exportação” que faz parte desse construto tão abrangente sobre o qual o autor se refere.
Embora considerando que o mito da democracia racial começa a se desconstruir nos anos 1950, Costa assegura que as desigualdades continuam com a modernização, e coloca a importância do combate ao racismo com medidas específicas de ação afirmativa, com o desenvolvimento dos estudos raciais, dentre outras medidas, sejam de procedência brasileira ou não (Ibidem).
À Guisa de Conclusão
Acreditamos que, a Universidade como lugar por excelência da elaboração do pensamento, colabora de tempos em tempos com uma hegemonia de determinada razão cientifica que se cristaliza no âmbito da academia e repercute no pensamento da sociedade. A ressonância dessas idéias no imaginário social é também disseminada. Esse movimento de construção de idéias que advém das pesquisas na ciência pode muitas vezes ser uma encomenda das agências financiadoras das investigações para privilegiar determinados interesses.
De acordo com a história da filosofia da ciência, é inerente ao pensamento científico a sua transformação, a sua falseabilidade (POPPER, 1902) as mudanças de paradigmas (KUHN, 2003) ou até a sua desconstrução.
A ciência está fadada a ser ultrapassada, muito embora o seu desenvolvimento não se dê de forma inteiramente nova, mas sim com base no que já foi pensado.
O que queremos destacar é que no caso das teorias racistas do século XIX as idéias científicas se estabeleceram reforçando a idéia de superioridade de uma raça sobre outra, assim como para justificar também os domínios econômicos, sociais e políticos de brancos sobre as demais raças.
A universidade brasileira hoje, por ocasião do debate em torno das ações afirmativas passa a rediscutir a origem e desenvolvimento dessas idéias racistas. Podemos perceber o quanto ainda repercutem nos sentimentos e comportamentos das pessoas, sendo a família e a escola em todos os níveis, a nosso ver, algumas das principais agências responsáveis pela reprodução do preconceito, da discriminação e do racismo.
Muitas Universidades no Brasil já experimentam o sistema de cotas, e já podem avaliar essa política, desde 2004, quando a primeira Universidade Federal, a UnB faz o seu primeiro vestibular. Os resultados são positivos, sendo o mais significativo a entrada de negros em cursos de médio e alto prestigio como Medicina, Direito, Arquitetura, Psicologia, Engenharia, por exemplo.
A Universidade Federal do Ceará, a pedido do Ministério Público e através de um grupo de professores iniciou reflexões sobre a implementação de uma política de acesso e permanência das populações mais desfavorecidas socialmente, camadas nas quais se encontram pretos e pardos (negros) de acordo com a classificação do IBGE. Infelizmente o então Reitor, na gestão vigente ainda neste ano de 2010, se mostrou contrário à política de cotas. Ademais, apesar dos esforços envidados por alguns professores na gestão anterior, assim como na atual gestão, a proposta de cotas para negros, índios e pobres da escola pública, foi fragorosamente derrotada.
Esta é uma política que vem mobilizando não somente a reflexão da comunidade universitária, mas também os movimentos sociais e a sociedade como um todo, pois comporta no âmbito de suas principais discussões, questões fundamentais relativas aos direitos humanos do cidadão. Nas universidades nas quais vem sendo implementadas políticas de ação afirmativa, estas vêm apresentando bons resultados como na UnB, UFBA, UFMG, mas sem dúvida a que mais cria polêmica são as cotas para negros.
A UFC, rejeitando essas políticas, reflete o senso comum, pois no Estado do Ceará é cristalizada a idéia de que não existem negros, mas somente índios e mestiços, ou seja: moreninhos, mulatos, marrons, ou outras tantas nomenclaturas atribuídas às pessoas negras como se isso atenuasse a qualidade ruim de dizer-se negro ou negra. As pessoas negras, aquelas que estão nessa gradação de cor entre pardos e pretos, em geral não se reconhecem como negros, porque ser negro significa ser inferior, sujo, suspeito, marginal, etc. Essas são idéias comuns e corriqueiras que se pode perceber diariamente no imaginário social. Hoje, alguns historiadores vêm procurando desconstruir algumas idéias da história oficial que afirma não ter tido escravidão negra no Ceará, e, portanto, que essa cultura da negritude e da africanidade não existe nesse estado. Na verdade, para o Ceará vieram menos negros se compararmos a estados como Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Maranhão, o que não significa que desvalorizemos, e criemos um silêncio e uma negação dessa cultura para invisibilizá-la. Sabe-se que até hoje há comunidades quilombolas no Ceará que precisam ser reconhecidas e amparadas em seus direitos.
A postura da universidade só dificulta esse reconhecimento deixando essas populações em situação muito precária na sua qualidade de vida. Os jovens quilombolas, assim como os demais negros pobres da escola pública, têm direitos à ascensão social e esta com certeza poderá acontecer se pleitearem uma vaga na universidade. Essa é uma responsabilidade da sociedade como um todo, mas, sobretudo, das instituições de ensino superior.
KUHN, Thomas S.- A estrutura das revoluções científicas, www.editora perspectiva.com.br. São Paulo, 2003.
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Notas:
(1) “A lei nº 9.100/95 expressamente instituiu o percentual mínimo de 20% de mulheres candidatas às eleições municipais do ano de 1996, com o objetivo de aumentar a representação das mulheres nas instâncias de poder. Posteriormente, a lei nº 9.504/97 aumentou o percentual para 30% (ficando definido um mínimo de 25%, transitoriamente, em 1980, estendendo a medida às outras entidades componentes da Federação, e também ampliando em 50% o número de vagas em disputa).” (BELCHIOR, 2006, p. 23).
(2) De acordo com o art. 37, VIII da Constituição Federal, deverá ser reservado um percentual dos cargos e empregos públicos para as pessoas portadoras de deficiência, definindo os critérios de sua admissão.
(3) Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), dentre outras.
(4) O autor faz rico levantamento sobre questões sobre como as raças se formam e se desfazem, e sobre eugenia. Ver mais em Schwarcz e Queiroz (1996).
(5) Jean Paul Sartre (1978) fala também da importância de se dar sentidos e significados novos as palavras de acordo com nossos interesses (interesse dos negros) Com relação à palavra “negro” por exemplo, Sartre (op. cit., p. 94) diz: “[…] o negro não pode negar que seja negro ou reclamar para si esta abstrata humanidade incolor: ele é preto. Está pois encurralado na autenticidade: insultado, avassalado, reergue-se, apanha a palavra ‘preto’ que lhe atiram qual uma pedra; reivindica-se como negro, perante o branco, na altivez.”
(6) Conforme Costa (2003, p. 45), “[…] o mito que persistiu desde os anos 30 e que parece ir se desconstruindo a partir dos anos 70 é o da brasilidade inclusiva e aberta, capaz de integrar em seu interior harmonicamente as diferenças.”
(7) Ver mais em Skidmore (1976, p. 70-80).
(8) Schwarcz (1996) faz um interessante estudo sobre teorias racistas com base em telas a óleo, gravuras, xilogravuras do século XIX. A autora também apresenta as teses da medicina legal de Lombroso, do psiquiatra Nina Rodrigues, dentre outros que, procuraram comprovar que quem apresentava traços negros ao nascer teria tendências a serem bandidos, marginais perigosos, loucos. Essas teorias justificam as idéias de eugenia.
(9) Muniz Sodré (1999), estudando a questão da identidade nacional, fala de uma referência clássica do Abolicionismo, o intelectual Joaquim Nabuco, e de uma afirmação proferida por este, mostrando o nível de eurocentrismo do seu pensamento.
(10) Sodré (op. cit., p. 86) traz afirmação de Monteiro Lobato, segundo ele, um “racista confesso” no qual este revela: “Só a imigração e a conseqüente fusão de sangue superior trará uma aptidão congênita para o progresso.”
(11) Sodré (1999) cita inúmeros brasileiros ilustres de todas as áreas que contribuíram com a formação dessa identidade nacional, dentre eles: Nina Rodrigues (psiquiatra), Euclides da Cunha (escritor), Cassiano Ricardo (poeta e escritor), Silvio Romero, Oliveira Viana (sociólogo), Farias Brito (filósofo) entre outros.
BIBLIOGRAFIA:
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Fonte: Adital