Uma nova “mudança” de pele de Zumbi ?

 

 

Qual o historiador que consegue estabelecer a real imagem de Zumbi ?

 

Nenhum.

 

Só sabemos de Zumbi devido à abundância de documentos portugueses citando sua coragem, sua bravura, sua exuberância estratégica e sua capacidade militar.

 

Ele era um negão de dois metros de altura ? Ninguém sabe. Era baixinho e mancava de uma perna – conforme um relato de Fernão Carrilho, líder uma expedição contra Palmares – pouco se sabe.

 

Sabe-se, sim, que ele venceu as tropas portuguesas e mercenárias durante 17 anos e se tornou um mito no nordeste. E só foi morto porque um dos homens – Antonio Soares, um mestiço – que compunha sua guarda pessoal o traiu: foi ele quem desferiu a primeira facada no peito de Zumbi desarmado, dando o sinal para os portugueses avançarem e trucidarem o homem que construiu uma história magnífica na diáspora.

 

O falecido antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), um dos maiores quadros do PDT, e naquele momento revestido como primeiro-ministro do governo Leonel Brizola (1983-1986), recebeu pedidos do movimento negro do partido para instalar um busto de Zumbi, na Avenida Presidente Vargas, na Praça Onze.

 

Ele, Darcy Ribeiro, simpático à reivindicação, passou pela mesma angústia histórica: como era Zumbi? Que traços tinha ? Como representar fielmente o mito sem acabar com o mito ? Descendia de qual etnia ?

 

O que se sabe é que Zumbi era filho de jagas, uma etnia da cultura bantu, angolana, extremamente guerreira, na mesma linhagem da Rainha Nzinga.

 

No entanto, Darcy Ribeiro e o arquiteto Antonio Filgueiras, que estava ao seu lado naquela empreitada étnica, optaram por outra jogada. Ou seja: valorizar a imagem de Zumbi através da cultura yorubá, da Nigéria, de grande influência no Brasil, através de sua religiosidade.

 

Assim, surge, na Presidente Vargas, em 1986, nada que lembre um guerreiro jaga de Palmares, mas a cabeça monumental de ONI, um espécie de deus-militar, cujo prenome era um título honorifico dado aos reis-guerreiros descendentes dos construtores da etnia yorubá, em Ilê Ifé, a cidade sagrada desta etnia.

 

Pronto, o antropólogo mineiro acabava resolvendo o drama das origens de Zumbi trocando sua etnia por outra, mais “valorizada” ” mais em vigor”. Assim, a escultura da cabeça de ONI que ele viu, em uma de suas viagens à Inglaterra, no Museu Britânico, acabou se estabelecendo há 24 anos como o primeiro monumento brasileiro em homenagem a Zumbi dos Palmares, na Praça Onze.

 

Mas a escultura da cabeça de ONI não está em qualquer sustentação. Quem a acolhe é a base de uma pirâmide, de argamassa forte, dando-lhe um conotação de sobriedade, permanência, eternidade e atemporalidade como , em determinados momentos se apresenta certas linhas ou linguagens africanas. Se a pirâmide para o antigo Egito era o espelho difusor do conhecimento humano, não precisamos dizer mais nada.

 

Zumbi, apesar da “mudança de pele”, de ” jaga” para ” yorubá”, está assentado em bases sólidas na Praça Onze. O monumento resiste ao tempo, aos inacreditáveis pichadores, aos olhares de despeito dos que torcem o nariz ao passarem pela Praça Onze, aos diversos governantes, e aos líderes “carismáticos” do movimento negro.

 

Agora, o estado do Rio de Rio Janeiro, através de um dos seus organismos ligados a defesa dos direitos afrodescendentes, propõe uma nova discussão: a pintura do monumento com as cores do panafricanismo.

 

De onde se tirou esta idéia ? Da qual cabeça saiu esta proposta ? Qual seu intuito ? Talvez, chamar mais a atenção daqueles que passam motorizados pela Avenida Presidente Vargas para o monumento afro ? Mostrar que estão atentos para o controle e manutenção dos monumentos afro?

 

Ou mais uma jogada de marketing político no período eleitoral ?

 

Na verdade, sejamos condescendentes, existe uma “estética” na proposta de “pintar Zumbi”. O defensor ou autor da proposta quer fortalecer talvez uma proposta de “africanidade” pintando o monumento com as cores de um grande movimento da comunidade negra internacional.

 

Mas, indagamos, a africanidade se mede com esta atitude ? Afinal de contas, como demonstrou De Dubois, o panafricanismo mexe com as entranhas das origens da África e também se conecta com todos os negros nascidos em continentes diferentes, seja em que época for.

 

As cores da unidade africana – verde, vermelho, amarelo, tradicionalmente vinculadas à bandeira da Etiópia, e que alguns acrescentam até o preto – mostram logo sua nova proposta simbólica para o Monumento de Zumbi: torná-lo “bandeiroso”, ” chamativo”, ” atraente”, “incandescente”…é isto mesmo ou a proposta é outra ?

 

Não sei, acho que tudo é possível neste atual momento histórico. Mas há limites. Porque mexer com a figura de Zumbi (pela sua representação histórica, pelo que nos dá de referência, pelo o que nos dá de liderança) é muito complicado. Não negociemos Zumbi, por favor. Ele, ali, com sua sobriedade, seu significado silencioso, seu olhar em direção ao infinito, nos dá um sentimento de permanência total num espaço altamente valorizado do Centro carioca.

 

Ele, Zumbi, já “mudou de pele” e, novamente vamos por uma pele a qual ele nem suspeita que seja ?

 

Não o use como moeda de troca, pedimos encarecidamente.

 

 

 

Fonte: Lista Racial

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