MEC de Bolsonaro nega Bolsa Permanência a 6 em cada 10 alunos indígenas e quilombolas

Auxílio de R$ 900 por mês permite que essas populações se mantenham longe dos seus territórios. Falta de bolsas obriga universidades a criar outros critérios de seleção

No ano em que a Lei de Cotas completa dez anos, estudantes indígenas e quilombolas enfrentam um desafio ainda maior do que entrar na universidade: se manter nela. Vindos de espaços em que o dinheiro não é a moeda de troca mais valiosa, eles contam com a Bolsa Permanência para se sustentarem nas cidades em que estão localizados os campi das universidades federais. Levantamento exclusivo da Agência Pública com dados obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI) mostra, porém, que o programa foi drasticamente reduzido durante o governo Bolsonaro. Hoje seis entre cada dez alunos dessas populações que solicitam o auxílio têm seus pedidos negados.

Para receberem o auxílio de R$ 900, além da autodeclaração, os alunos indígenas e quilombolas precisam apresentar uma declaração da comunidade de residência, uma declaração da Funai ou da Fundação Palmares e um termo de compromisso. O benefício prevê pagamentos durante toda a graduação, podendo se estender por seis meses após o fim do curso. Professores ouvidos pela Pública relatam que antes todos os alunos que solicitavam a bolsa costumavam receber o auxílio. O programa atende também estudantes de baixa renda não pertencentes a comunidades tradicionais, com um valor menor do auxílio, de R$ 400. 

Indígena do povo Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Sul, Hernâni Cáceres é um dos quase 3.300 estudantes no país que têm direito à Bolsa Permanência e não conseguem acessá-la. Cáceres ingressou no curso de Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) em 2019. Ele esperou a abertura do edital de 2020 para pedir a bolsa, o que não ocorreu, pois o MEC suspendeu os credenciamentos para novos auxílios durante a pandemia da Covid-19. 

O estudante Hernâni Cáceres não teve acesso à Bolsa Permanência (Foto: Arquivo pessoal)

Dois anos depois, com o credenciamento reaberto, o estudante da aldeia Amambai Guapo’y, já no terceiro ano de graduação, foi surpreendido com a resposta negativa do sistema de bolsas. “Quando eu soube, já fui atrás, quase fui o primeiro a me inscrever. Por que não deu certo? Olha, eu não sei”, relata.

Além de Hernâni, a UFGD teve outros 120 alunos inscritos no programa em 2022, sendo todos indígenas, dos quais apenas 27 foram atendidos. “Até 2019, o acesso era universal, todos os alunos que se cadastravam tinham bolsa. Este número tão baixo é inédito”, afirma a professora Maria Aparecida Mendes de Oliveira, coordenadora do curso de Licenciatura Indígena da UFGD, que recebe estudantes de 17 municípios da região de Dourados (MS). 

O retrocesso da política afirmativa de permanência nas universidades, porém, não começou em 2022. Em 2013, primeiro ano do programa, a Bolsa Permanência favoreceu 6.578 estudantes. Em 2014, com incremento de verba do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), financiador do programa, o número de favorecidos saltou para 15.477 alunos. 

Ano a ano, o total de bolsistas foi crescendo: 21.245 em 2015, 24.523 em 2016, até se estabilizar em 2017, com cerca de 24 mil beneficiários. Naquele ano, foram investidos R$ 134,3 milhões no programa. A partir do último ano do governo Temer, o número de bolsas começou a cair, diminuindo ainda mais no governo Bolsonaro.

Em 2022, quando as universidades federais voltaram às aulas presenciais depois da vacinação em massa contra a Covid-19, o MEC ofereceu apenas 2 mil bolsas para uma lista de 5.278 mil estudantes que declararam precisar de auxílio para manter a frequência no curso. Somados aos 8.785 estudantes que já contam com a bolsa, hoje há 10.785 alunos recebendo a Bolsa Permanência.

Arte: Pedro Vó/Agência Pública

A estrutura financeira de estudantes indígenas e quilombolas é muito diferente de qualquer estudante já inserido no contexto urbano, explica a antropóloga indígena Braunila Baniwa, ao ressaltar a importância da Bolsa Permanência para essas populações. A cultura extrativista e o trabalho na roça da maioria dos seus pais e familiares nas florestas e comunidades, diz, não permitem que eles se mantenham com o alto custo de vida urbano, que só aceita dinheiro para sua manutenção. “Na cidade se passa fome, ninguém te oferece água, comida, nem teto. Tem que pagar.”

Seriam necessários R$ 34,8 milhões de verba pública – apenas R$ 2,9 milhões por mês – para atender o número de candidatos que têm direito ao programa, mas não foram contemplados neste ano. A título de comparação, esse valor é inferior aos gastos individuais do presidente Jair Bolsonaro nos cartões corporativos no período de 35 dias entre abril e maio, que foi de R$ 4,2 milhões.  

Em nota enviada à Pública, o MEC informou que o programa não apresentou cortes em 2022 (veja íntegra da nota aqui). A nota diz que “pelo contrário, houve um acréscimo aproximado de R$ 28,5 milhões na ação correspondente à concessão de Bolsa Permanência, entre a Lei Orçamentária Anual de 2021 e de 2022”. Vale lembrar que o “acréscimo” informado pelo MEC se deu em relação a um ano em que não houve novos cadastros por conta da pandemia. O ministério ainda informou, na mesma nota, que há previsão para mil novas concessões de bolsas para o segundo semestre de 2022.

Com menos bolsas, universidades criam critérios próprios

Com 27 bolsas para os 121 inscritos, a UFGD se viu obrigada a criar uma comissão na Pró-reitoria de Assuntos Estudantis para definir novos critérios de distribuição do auxílio. Além dos critérios já previstos na portaria do MEC, a instituição passou a levar em conta a situação socioeconômica dos alunos, se eram mães solo, a maior distância do território em relação a Dourados e se são moradores de áreas de retomada dos territórios, entre outros fatores. “Mesmo assim vários estudantes dentro dos critérios não foram atendidos, porque as vagas foram muito poucas”, comenta a professora Maria Aparecida.

A mesma situação ocorreu na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), que recebeu apenas 19 bolsas. Quilombola e mãe solo de dois filhos, Adenara Ferreira dos Santos é um exemplo de estudante que, mesmo apta a receber a Bolsa Permanência pelos critérios do MEC, foi submetida a mais um filtro criado na universidade. “Como vieram menos bolsas, o critério foi dar para mães solteiras com filhos pequenos”, diz ao explicar por que não ficou entre os selecionados para receber a Bolsa Permanência.

Atrás do objetivo de ser professora, ela conseguiu uma vaga no curso de licenciatura em geografia por meio do processo seletivo exclusivo para quilombolas. Os dois primeiros anos de aula online foram frequentados remotamente, do seu território. Agora com aulas presenciais, Nara, como é conhecida na comunidade, pega um ônibus e uma balsa para chegar ao campus em Santarém. Para conseguir estudar, deixa os dois filhos, já adolescentes, com o irmão dela no Quilombo Passagem, que fica no município de Monte Alegre, a duas horas e meia de balsa do campus da Ufopa. 

Não é a primeira vez que Nara, 34 anos, tenta se manter na universidade. Há alguns anos, ela cursou três meses de pedagogia em uma faculdade particular, mas os R$ 330 de mensalidade e todos os outros custos para viver longe de seu território não lhe permitiram continuar.

“Quando as aulas começaram, eu fui conversar com o coordenador do curso, explicar que não tinha condições de me manter em Santarém. Ele falou que era pra eu continuar, que iam me ajudar”, diz. Como tem aulas durante o dia e à noite, ela não consegue conciliar a vida acadêmica com um emprego. Para pagar o aluguel, conseguiu uma bolsa de R$ 400 de um fundo da própria universidade. Vez ou outra recebe por Pix doações de R$ 20 ou R$ 30 de professores e amigos. 

Os estudantes aptos a receber a Bolsa Permanência vivem duas realidades diferentes nas universidades: parte deles ingressa por meio da Lei 12.711/2012, que reserva vagas à população preta, parda e indígena, caso de Adenara. Outra parte está matriculada nos 52 cursos de Licenciatura Intercultural Indígena espalhados pelo país, cujas vagas são exclusivamente para indígenas e voltadas para a formação de professores. Os cursos são presenciais no regime de alternância: o estudante fica 15 dias no município onde está o campus da universidade e outros 15 dias em seu território. 

Por receberem formação docente e passarem metade do mês em suas comunidades, esses estudantes têm a possibilidade de serem contratados como professores em suas aldeias. Cáceres recebe um salário mínimo como professor. “Dou aula para jovens na modalidade EJA [Ensino de Jovens e Adultos] e para o Ensino Fundamental na língua materna, Guarani-Kaiowá. A bolsa faria diferença para mim, mas faz ainda mais falta para indígenas que não têm outra renda”, defende.

“Fim do prazo de autorização pelo Pró-reitor”

Diversos estudantes ouvidos pela Pública relatam confusão entre os comunicados das universidades e o sistema online do programa. Hernâni Cáceres, estudante da UFGD, no Mato Grosso do Sul, recebeu a mesma mensagem que Laura Barroso, indígena Desana, e Beatriz de Paula, do território Baré, ambas matriculadas na Universidade Federal do Amazonas (Ufam): “Fim do prazo de autorização pelo Pró-reitor”.

Mensagem recebida pela estudante Beatriz de Paula, da UFAM, como resposta negativa ao seu pedido de bolsa (Foto: Reprodução)
Comunidado da UFAM aos estudantes que receberam a mensagem acima (Foto: Reprodução)

Cabe aos pró-reitores de cada instituição analisar os documentos solicitados pelo MEC para conceder a Bolsa Permanência, porém o comunicado causou espanto nas universidades. Segundo a Ufam, “a mensagem enviada ao SISPB [Sistema Bolsa Permanência] passava a impressão de que não houve cumprimento de prazos, o que não ocorreu”.

Junto a outras universidades, a Ufam reclamou do ruído causado pela mensagem durante o Fórum Nacional de Pró-reitores de Assistência Estudantil, realizado no começo de maio. Segundo a instituição, o representante do MEC que recebeu a reclamação não manifestou nenhuma resposta.

Pelo país, a comunidade estudantil indígena e quilombola também reclama contra o baixo número de bolsas. Na UFGD, estudantes se reuniram em frente à reitoria da instituição no dia 8 de abril pedindo o aumento do número de bolsas e a manutenção do curso de licenciatura exclusivo para indígenas, que corre o risco de fechar no segundo semestre por conta do corte de verbas de custeio. Eles apresentaram as reivindicações para o reitor Lino Sanabria, indicado ao cargo pelo governo Bolsonaro, que ignorou a lista tríplice da comunidade acadêmica. Em outubro do ano passado, cerca de 700 estudantes indígenas e quilombolas protestaram em Brasília contra os cortes no programa. 

Num cenário diferente de várias universidades no país, todos os 123 estudantes da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) que pediram bolsa foram contemplados. Em nota, a UFRB informou que teve um número menor de inscritos do que o número de bolsas liberadas e que o “enquadramento do MEC foi proporcional à demanda reprimida de estudantes quilombolas e indígenas informados em comunicação oficial pela UFRB”. 

Professores denunciam falta de bolsas ao MPF

Na Universidade Federal de Rondônia (Unir), a falta de bolsas levou dois professores a protocolar uma carta-denúncia no Ministério Público Federal (MPF) no estado pedindo “providências urgentes”. Segundo a carta, foram 320 pedidos de bolsa e apenas 20 concessões. 

“Ao invés de avaliar esta política de acesso e permanência como elementos indissociáveis, ou até manter os cadastros existentes, a gestão Bolsonaro, sem nenhuma discussão com os/as interessados/as (estudantes indígenas e quilombolas), simplesmente efetivou cortes que sinalizam para a extinção do Programa Bolsa Permanência”, diz o documento. 

Para a professora Josélia Gomes Neves, uma das autoras da carta, a não concessão de bolsas abre um precedente para o começo da extinção do programa. “Esses alunos que estão entrando agora começam a se perguntar: por que o meu colega anterior recebia esse recurso e eu não estou recebendo? Aí tem uma situação explícita de jurisprudência que nós levantamos junto ao Ministério Público”.

Segundo o MPF, foi encaminhado ofício ao MEC pedindo esclarecimentos sobre os possíveis cortes e à universidade solicitando informações sobre o critério de distribuição de bolsas na instituição. O objetivo dos professores é que o MPF judicialize o caso em nível nacional, já que o baixo número de bolsas ocorre em todo o país. 

A Pública pediu explicações ao MEC sobre os critérios de seleção que levaram à concessão de apenas 2 mil novas bolsas em todo o país em 2022. Em nota, o ministério explicou que, em vez de atender as universidades conforme a demanda de bolsas, autorizou o auxílio considerando a média da taxa de cobertura do programa em cada instituição. Aquelas que tinham um percentual maior de cobertura de bolsas por aluno indígena e quilombola receberam menos auxílios, ao passo que as que tinham menor número de contemplados receberam mais bolsas. O MEC chamou isso de modelo de proporcionalidade (ver tabela aqui).

O estudante indígena e o quilombola na cidade

O Programa Bolsa Permanência reconhece a necessidade de subsidiar os estudos de quem não vive no ambiente urbano e, de uma hora para outra, tem de enfrentá-lo para seguir os estudos. Segundo a portaria que institui o programa, a bolsa é diferenciada considerando “as especificidades desses estudantes com relação à organização social de suas comunidades, condição geográfica, costumes, línguas, crenças e tradições, amparadas pela Constituição Federal”.

Como outros estudantes indígenas da sua aldeia, Tambura Amondawa, da Terra Indígena (TI) Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, depende dos R$ 900 que recebe para se manter no curso de Licenciatura Intercultural Indígena na Unir. Os pagamentos, porém, não são regulares, relata. “A bolsa não é certeza, tem mês que não cai.”

Uma quitinete em Ji-Paraná, município em que fica o campus da Unir, onde Tambura estuda, custa entre R$ 500 e R$ 1.000. Quanto mais barato, mais longe do local das aulas, e o transporte se torna outra despesa. “Os outros comparam a gente com os estudantes não indígenas, achando que aqueles R$ 900 da bolsa vão complementar a nossa renda e o dinheiro vai dar. Mas esse recurso é o único que muitos têm”, diz.

Além da diminuição do número de bolsas, os espaços de diálogo entre grupos indígenas e quilombolas e poder público também foram drasticamente reduzidos no governo Bolsonaro. Em julho de 2020, o governo trocou as cadeiras do Conselho Nacional de Educação, excluindo a representação indígena. A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC, responsável por garantias de inclusão no sistema educacional, foi extinta em 2019 por Bolsonaro e o então ministro da Educação Ricardo Vélez Rodríguez.

Os poucos alunos que conseguem receber a bolsa também sofrem com a não atualização do valor do auxílio, que em 2013 tinha um poder de compra muito superior ao atual. Se reajustada com base no ritmo ascendente da inflação no Brasil no período, a bolsa pagaria hoje o valor de R$ 1.555,70, de acordo com a calculadora do IPCA do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Braunila Baniwa participou das primeiras turmas que receberam auxílio para frequentar a Universidade de Brasília (UnB), com recursos de um convênio da Funai e da Fundação Brasília. Hoje, como mestranda em antropologia, ela critica a não atualização dos valores da Bolsa Permanência. “Eu falo muito daqui da UnB porque é uma realidade que eu enfrento. Novecentos reais em Brasília não é nada, temos que morar em sete pessoas para a gente poder sobreviver. Uma dúzia de ovos em 2013 tinha um valor, hoje tem outro.”

Mesmo defasada, a bolsa já é um alívio para Oyxibo Itabira Filho Suruí, indígena da TI Sete de Setembro, em Rondônia, que vive a 100 quilômetros de distância do campus da Unir, onde estuda engenharia ambiental e sanitária. Oyxibo fazia o trajeto de 200 quilômetros de ida e volta com uma motocicleta. No dia em que falou à Pública, em 27 de abril, o litro da gasolina em seu município custava R$ 7,90. “Sou casado e ajudo a minha família. Optei por ir e voltar todo dia porque eu não tenho condições de alugar uma casa lá pra mim. Vamos ver se eu aguento.” Tendo se candidatado à bolsa, Oyxibo teve a confirmação quando a primeira parcela caiu na conta, em 20 de maio. 

Oyxibo Itabira fazia o trajeto de 200 quilômetros de ida e volta à universidade com uma motocicleta (Foto: Arquivo pessoal)

Tendo saído da TI Alto Rio Negro, no extremo oeste da Amazônia brasileira, para estudar na UnB, Braulina Baniwa assegura a importância de acesso dos povos originários às universidades. “Passamos muito tempo como pessoas tuteladas. Mesmo depois de 1988 [ano da Constituinte], vejo que somente de três anos para cá é que temos pessoas que se dedicam a lutar pelos nossos direitos coletivos a partir da sua formação técnica.”

Cofundadora da Articulação Brasileira de Indígenas Antropóloges (Abia), Braulina Baniwa afirma que “ainda é muito pouco”. “Não vemos procuradores indígenas, juízes indígenas, nossos advogados para atuar em defesa dos nossos direitos e os médicos para cuidar da saúde indígena ainda são muito poucos”, observa. Da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), o quilombola Walisson Braga, estudante de artes visuais da UnB, analisa a Bolsa Permanência como uma ferramenta de desenvolvimento coletivo, e não apenas individual. “Quando os quilombolas passam pela universidade, não é só a gente que está lá. Levamos nossa comunidade inteira na mochila, damos um retorno ao nosso território.” Para ele, essa ferramenta também é de mão dupla. “Muita gente dentro das universidades não conhece a cultura quilombola como deveria. A universidade forma a gente, mas nós também formamos a universidade”, conclui.

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