Cotas Raciais na USP

Em meados dos anos 1990, antes de qualquer outra universidade do país, a USP tomou a iniciativa de criar uma comissão para discutir o tema das Políticas Afirmativas para negros. Recordo-me bem que dela, com certeza, 3 negros faziam parte: o doutor Kabengele Munanga, então professor da FFLCH-USP; eu, ex-aluno da universidade; e um carioca recém-chegado, Celso Pitta, economista, à época Secretário de Finanças da Cidade de São Paulo. A comissão pioneiramente criada se evaporou e a negativa à adoção das Cotas Raciais passou a ser um mantra repetido por mais de 20 anos.

Foi razoável ter sido a USP a primeira instituição universitária a buscar aquele debate. Afinal, São Paulo, ao longo do tempo, desde a Frente Negra Brasileira nos anos 1930, o MNU em 1978, o Conselho do Negro em 1984, e suas organizações negras que são padrão de referência até os dias atuais, foi uma região que lutou com muito denodo contra o racismo institucional que “legitima” uma cidadania de segunda classe para a população negra no Brasil.

Depois, a própria USP, pioneiramente, ajudara a desmascarar a Democracia Racial com os estudos da chamada Escola Sociológica Paulista, liderados por Florestan Fernandes e Roger Bastide, secundados por estudiosos como Oracy Nogueira, Octavio Ianni, Fernando Henrique Cardoso e outros.

A verdade, contudo, é que a USP foi a primeira a propor o debate e a última a implementar as Cotas Raciais, o que se deu no último dia 4, quando o Conselho Universitário da instituição sucumbiu frente aos fatos. Aprovou-se Ações Afirmativas que se darão de forma escalonada até atingir 50% das vagas para estudantes advindos da escola pública – sendo que uma parte destas será destinada aos autodeclarados pretos, pardos e indígenas. Alegar o risco de perder qualidade foi uma das falácias repetidas. Qualidade, a USP passa a começar a ter agora: qualidade moral. Uma universidade pública precisa refletir a sociedade e aproveitar todos os talentos. A USP nesse tempo todo tem sido uma universidade estatal, agora começa a ganhar características de uma universidade pública, mantida que é por impostos pagos por toda a sociedade

Em abril de 2012 o STF, por unanimidade, já havia respondido àqueles que resistiam às cotas – vitória arduamente conquistada pelo Ativismo Negro e que acabou gerando um subproduto elogiado pela mídia anti-cotista: as cotas sociais, que incluem também brancos e orientais provindos da escola pública.

Outro mantra que se insistiu em repetir foi a alegação do mérito. Trata-se de um sofisma que alega o mérito como doutrina, mas que não afere o que seria esse mérito caso as condições de disputa fossem efetivamente iguais. Há estúpidos – alguns agem de má-fé mesmo -, que supõem que o sucesso dos não-negros é algo naturalmente conquistado, sem levar em conta a política artificial que os favorece.

O BNDES é uma central de Ações Afirmativas (opera com um conceito semelhante) montada para favorecer o empresariado brasileiro, que alega diferenças competitivas com os mercados internacionais – e dinheiro é o que nunca faltou para alavancar o capitalismo sem capital do Brasil.

Depois, ao alegar a excelência como pressuposto e nunca ter conquistado um Prêmio Nobel sequer evidencia a necessidade da USP rever seus conceitos de qualidade. Sempre enfatizo que a seleção brasileira de futebol é majoritariamente negra e que já foi campeã cinco vezes e vice-campeã duas. Na arte da bola, o talento tem de ser provado em campo e não nos biombos corporativos da academia. É que no futebol não se aproveitam apenas os talentos dos bem-nascidos.

A verdade é que a sociedade paulista em particular deve muito aos negros. Quem desejar entender essa afirmação deve ler Café & Negro do historiador Silva Bruno. Nesse ensaio fica nítido como São Paulo constrói sua base econômica que depois o tornaria a “locomotiva do Brasil”, como os paulistas de 400 anos gostavam de se referir. A indústria cafeeira só foi possível graças ao trabalho escravizado em que negros chegavam a trabalhar 16 horas por dia em semanas solteiras. A população escravizada, literalmente, morreu de tanto trabalhar para construir o alicerce econômico de São Paulo. Na Província de São Paulo, negras e negros, se esfalfaram no cultivo do café que capitalizou a industrialização paulista, da qual o negro foi vetado com o advento do trabalho livre e chegada do imigrante europeu. Muito ainda se deve à população negra pelo Estado de São Paulo que até o presente momento não regulamentou as Cotas no serviço público, apesar da Lei correspondente já ter sido aprovada pela Assembleia Legislativa. O que faz o Conselho do Negro criado por nós do Movimento há 33 anos atrás? Quando será regulamentada as cotas raciais no serviço público paulista? Quando? O que está faltando, afinal?

Finalmente, não há como deixar de admirar os editoriais dos jornais paulistas, que, mesmo após todo o sucesso das Políticas de Ação Afirmativas, continuam repetindo suas heresias sem que o chamado OMBUSDMAN dê um pio sequer – isto ao longo de quase 20 anos. Para o editorialista da Folha de S.Paulo (9/7) … ”não faz sentido sustentar que uma família branca tão carente quanto uma negra não deva receber o apoio do poder público apenas devido a sua cor”, revelando todo o seu analfabetismo político-histórico em relação ao país. Os negros estão relegados à condição de “carentes” porque são negros. Os brancos pobres – e os há – são carentes (pobres) por motivos difusos. Não existe um só branco pobre no Brasil que possa alegar para a sua pobreza sua condição de branco.

Graças à luta por cotas raciais, hoje no Brasil, os brancos que vêm da escola pública e de “família carente” têm direito às cotas sociais nas universidades. Estive com o ativismo negro pessoalmente nessa batalha. Trata-se de um subproduto legítimo da luta racial e não de editoriais que contemplam os acontecimentos da cena nacional.

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