No próximo mês de agosto começará a coleta de dados do Censo Demográfico de 2010. Segundo o IBGE, esses dados revelarão em profundidade o perfil da população e as características de seus domicílios e servirão de base para “todo o planejamento público e privado da próxima década”. Beleza.
O atacante Neymar do Santos e a candidata à presidência da República Marina Silva, cada qual a seu modo, revelaram aos jornais nos últimos dias suas dificuldades para responder a uma pergunta do questionário básico do Censo de 2010: “Qual a sua cor ou raça?”. Afinal, vieram a público dizer que, como o racismo ou o preconceito não os alcançou ainda, sentem-se pouco à vontade para assumir uma identidade negra.
Não sabemos como serão orientados a proceder os duzentos e trinta mil recenseadores em processo de seleção no IBGE, quando confrontados com moradores que manifestem as vacilações dessas celebridades. São vacilações altamente contagiosas, como se sabe.
Em nosso louvado contexto de harmonia e integração, sabe-se que, infelizmente, quem não consegue driblar seu pertencimento étnico-racial pode acabar como Eduardo Pinheiro dos Santos, o motoboy que policiais militares torturaram e mataram em São Paulo. Quando as condições de afirmação da negritude são tão desfavoráveis, é compreensível que muitas pessoas se recusem a pagar os custos elevados exigidos pelo ódio racial. Não há apenas riscos de interrupção de trajetória, rebaixamentos, exclusões, ofensas e humilhações: há riscos reais e concretos para a vida dos negros.
A publicidade oficial poderia, em razão da importante coleta de dados do Censo de 2010, e das expectativas da subcidadania negra, fazer algo a respeito? Digo contribuir para informar mais amplamente, estimular, tranqüilizar? No próximo censo, o questionário básico incluirá a questão sobre cor/raça para todos os domicílios, uma novidade que talvez pudesse provocar esforços adicionais da capacidade de comunicação governamental. Uma campanha poderia sinalizar que não se trata apenas de coletar dados sobre identidade, mas, finalmente, de desenhar e implementar ações governamentais para superar desigualdades. Se não tem sequer coragem de falar sobre identidade étnico-racial, não terá coragem de fazer nada acerca disso.
O governo brasileiro, aliás, apóia a realização de seminário no Rio de Janeiro (03.04., Palácio do Itamaraty), que, segundo informam, discutirá a importância da “coleta de dados e o uso de indicadores para a formulação de políticas públicas com recorte racial”. Verdades tão evidentes, se dizia antigamente, não precisavam ser enunciadas, quanto mais “discutidas”.
Por esta razão é preciso insistir que os dados são importantes quando, além de coletados, são utilizados. A base de indicadores sobre desigualdades raciais do IBGE, que será atualizada agora com o censo de 2010, não tem servido (embora esteja consolidada há décadas) para a elaboração de programas e políticas de superação dessas desigualdades.
Durante a entrega do Documento da Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, eu lhe disse exatamente isso e acrescentei que os dados serviam apenas para reforçar as denúncias do Movimento Negro. A propósito, quantos secretários-executivos de diferentes ministérios, ou outros gestores desse calibre, estarão participando do seminário do Rio? Já se passaram 15 anos, a realidade de descaso e omissão não se alterou, e o tema do evento do Rio sugere um novo alvorecer dos tempos idos e vividos.
Dois dias após o evento do Rio, o IBGE lança o Censo de 2010 em Brasília. Anunciam-se novos tempos para o planejamento público nas próximas décadas. “Cousas futuras”, dizia a enigmática cartomante de Esaú e Jacó, romance de Machado de Assis. Eu confesso aqui minha admiração incondicional pelos fatos futuros.
Fonte: Írohìn