Criminalização da pobreza e a figura do homo sacer

Fonte: A queima roupa
Criminalização da pobreza. O termo é autoexplicativo, e bem familiar ao brasileiro de baixa renda, que traz inscrita na cor da pele e nas características raciais a marca de classe e, com ela, os desafios de viver num país que insiste em negar uma segregação que é óbvia até ao observador mais desatento. Os lugares sociais a essa categoria reservados são deduzidos a partir desses indicadores étnicos. Quanto mais distante fisicamente do padrão branco europeu, mais baixa a posição na pirâmide social. No país que ocupa o quarto lugar em concentração de renda no mundo, ser negro é sinônimo de ser pobre. Entretanto, avançando nesse raciocínio perverso, parcela da população começa a considerar legítima a correlação de pobreza com criminalidade, comprando a ideia de que nossos pobres e miseráveis são de fato bandidos perigosos. As consequências desse raciocínio, sobre as quais pretendo aqui tecer algumas considerações, além de perversas, são contraproducentes, na medida em que impedem o diagnóstico do problema em sua real dimensão, ao mesmo tempo em que estimulam a manutenção do inegável quadro de segregação existente no país.

Traduzir os dados da desigualdade social no Brasil é desvendar um abismo social que se fundamenta em preconceitos raciais e de gênero, e até mesmo geográficos, que nos recusamos a admitir, mas que as estatísticas não podem senão revelar. Se, por exemplo, tomamos como referência parcela da população branca do sudeste, estamos no patamar de países europeus. Em contrapartida, se tomamos como recorte a população negra moradora de periferias do nordeste do país, o quadro muda completamente: nesse caso, ficamos abaixo até mesmo de alguns países africanos. Na base da pirâmide da desigualdade social brasileira, a mulher negra, nordestina, moradora de periferia. Daí a inferir que esse imenso contingente de miseráveis representa um perigo para o restante da população é um passo perigoso que muitos começam a dar.

Os reflexos mais evidentes desse abismo social que segrega a população negra e pobre a uma distância segura do resto da sociedade são a criminalização da pobreza com seus desdobramentos em forma de arbitrariedade policial e injustiça jurídica, e a ideia generalizada entre a população de que nossas favelas são redutos de violência e criminalidade. Não é preciso uma grande investigação sociológica para deduzir que isso está longe de ser verdade. A correlação entre pobreza e criminalidade é ainda mais desonesta se considerarmos que basta uma rápida olhada nos jornais do dia para concluir que os crimes mais graves são cometidos em assépticos gabinetes ocupados por criminosos de colarinho branco. Dados recentes indicam que menos de 1% dos jovens favelados se envolvem no crime. Ainda que, nesses lugares em que miséria e violência são endêmicas, 99% dos jovens digam não ao caminho (aparentemente) mais fácil, os programas jornalísticos e a mídia em geral vendem a ideia de que esse número é bem maior. Quem já não se surpreendeu protegendo a bolsa ao avistar um desses jovens nas ruas de nossas grandes cidades? De onde vem o medo que se apodera de nós quando cruzamos com um desses meninos maltrapilhos que vivem nas ruas do centro de São Paulo? E quem lamenta a morte dos que foram assassinados na Candelária, no Rio de Janeiro, em 1993?

Aqui, a figura do homo sacer romano se funde à desses enjeitados. Assim como aquela sociedade descartava esses sub-homens, negando-lhes a humanidade conferida aos cidadãos, aqui também poucos lamentam o extermínio de enormes contingentes de jovens negros assassinados. Seres de exceção e miseravelmente vulneráveis, esses homo sacer brasileiros denunciam na sua experiência de homens descartáveis uma subexistência que são condenados a encarnar.

 

Matéria original:Criminalização da pobreza e a figura do homo sacer

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