Crítica ao ostracismo do negro na literatura

‘A crítica nacional ignora o fato de que temos escritores negros e os relega ao completo ostracismo nos grandes meios literários do País’

Ricardo Riso

Lamentável! Foi o meu sentimento após a leitura da matéria “Negro: imagem e semelhança de quem” de Sônia Marta Coelho Pereira, inserida no caderno especial “A trajetória dos personagens negros, da África ao Brasil” da revista Conhecimento Prático: Literatura, nº 34 – janeiro/2011, páginas 27 a 38. É triste constatar que uma das raras revistas dedicadas à Literatura no mercado editorial brasileiro exclui a participação dos escritores negros no corpus literário nacional, orientação claramente seguida pela autora do artigo supracitado e que me remete ao que Roland Barthes definiu como “fascimo da língua”, pois a língua está “a serviço de um poder”. No caso, o poder da discriminação racial aos negros que norteia o pensamento brasileiro.

A proposta do artigo é demonstrar a discriminação que sofreram – e ainda sofrem – os personagens negros da literatura brasileira e como esse processo tem sido revisto na contemporaneidade. As personagens esteriotipadas, apresentando-se nos textos literários em posições sulbaternas, coisificadas, animalizadas e ridicularizadas por causa do fenótipo foi uma constante em nossa literatura e reforçaram o preconceito racial que perdura em nossa sociedade.
A autora até inicia o artigo reconhecendo “que por séculos o negro foi literariamente representado sob a ótica do preconceito”, contudo, o grave erro de sua explanação é não mencionar em nenhum momento autores(as) negros(as), recordando que a crítica brasileira mantinha absoluto silêncio a respeito do preconceito do negro na literatura como bem assinala o escritor e ensaísta, Cuti, em O leitor e o texto afro-brasileiro:
foi preciso que os brasilianistas aqui viessem para desvendar o como se dava a tematização do negro brasileiro. Os intelectuais brancos do País sempre se mostraram avessos a esse empenho. Os primeiros livros que surgiram, questionando e fazendo levantamento de obras para o estudo da questão racial no âmbito literário, foram: A Poesia Afro-Brasileira, de Roger Bastide (1943); O Negro na Literatura Brasileira, de Raymond S. Sayers (1956-58) e O Negro na Ficção Brasileira, de Gregory Rabassa (1965).
Sendo assim, após escancarada a postura do cânone literário brasileiro pela crítica estrangeira, a crítica nacional continua ignorando o fato de que temos escritores negros, relegando-os ao completo ostracismo nos grandes – e são tão poucos – meios literários do país. Essa postura é acompanhada pela autora do artigo aqui referenciado, pois recorre ao incompreensível erro de somente apresentar os personagens negros apropriados e interpretados por quem não é negro e que não oferece a esse personagem o papel de protagonista de suas narrativas nem expõe as vivências comuns a nós, negros.
Seria de imensa valia que a autora fizesse um contraponto com a visão de um personagem negro sendo escrito por um autor negro, tornando, assim, o negro protagonista de sua história, revelando seus anseios, desejos, medos e principalmente expondo o seu ponto de vista frente ao racismo diário que todos nós sofremos neste país. É fundamental a leitura por esse viés como esclarece a Profa. Dra. Maria Nazareth Soares Fonseca em seu artigo Poesia afro-brasileira – vertentes e feições:
A proposta de transgressão, que se efetiva também em textos da chamada literatura afro-brasileira, não pretende iluminar os lugares já indicados pela própria sociedade. Procura ultrapassar mesmo algumas posturas que, embora mais críticas, ainda se ligam a visão do negro “tutelado”, pois, ao falar por ele, silenciam a sua voz e imobilizam reações concretas para desarticular os papéis estabelecidos pela sociedade. (Fonseca, 2000, p.95)
Durante a matéria aqui referenciada, a Profa. Coelho Pereira aponta a mudança de paradigma que se dá a partir de 1980, período em que os títulos “Os tambores de São Luís”, de Josué Montello, e “Viva o povo brasileiro”, de João Ubaldo Ribeiro, como livros que procuraram “resgatar a imagem do personagem negro”. Talvez por desconhecimento, o artigo da autora ganharia em riqueza se revelasse e discutisse os diversos títulos lançados por escritores negros, principalmente a partir do final dos anos 1970 com a publicação das antologias “Cadernos Negros”, do coletivo Quilombhoje, que lança, desde 1978, anualmente e de forma ininterrupta uma coletânea de poesia e no ano seguinte, contos, somente de autores negros. Grandes nomes foram ali publicados e consagrados, tais como Cuti, Oliveira Silveira, Éle Semog, Miriam Alves, Lia Vieira, Lande Onawale, Conceição Evaristo, entre outros.
Conceição Evaristo talvez seja o caso mais surpreendente e inexplicável caso desse ostracismo, já com vários prêmios literários e traduções em diversas línguas de seus poemas, contos e romances. Seus poemas demonstram o cotidiano da mulher negra, a consciência de sua condição em nosso país como muito bem assinala Eduardo de Assis Duarte, eles enfatizam a necessidade do eu poético de falar por si e pelos seus. Esse sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza não apenas os escritos de Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos autores afro-brasileiros, voltados para a construção de uma imagem do povo negro infensa dos estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas, igualmente de resistência à opressão.
É essa escrevivência, termo cunhado pela própria autora, que sempre foi excluída do cânone literário nacional, escrevivência típica de um eu enunciador negro que aparece nos textos literários dos escritores(as) negros(as), por isso a importância que uma publicação como a Conhecimento Prático: Literatura possua a sensibilidade e ofereça o seu prestigiado espaço para esses(as) autores(as), até então ignorados do cenário nacional e dessa maneira contribuir, de forma positiva e inclusiva, para a inserção do negro em nossa sociedade.
A Lei 10.639/2003, o afro-brasileiro e a África
Um outro ponto da matéria da Profa. Coelho Pereira que gostaria de abordar é no que diz respeito à implementação da Lei 10.639/2003 nas escolas. Preocupa-me abordagens excludentes das manifestações culturais afro-brasileiras. A lei, uma conquista histórica e que contou com a participação efetiva de vários movimentos negros organizados ao longo de décadas de militância, afirma que “torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”, assim como incluir “o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil”. Entretanto, venho percebendo a sutileza perversa do racismo à brasileira no contato com alguns professores, por conseguinte a má vontade das escolas em implementar a Lei. As justificativas são diversas, tais como a de que não há racismo no Brasil e isso seria uma forma de acirrar as diferenças étnicas – como se o(a) estudante negro(a) não fosse discriminado de maneira ostensiva e cotidiana no espaço escolar – e também o preconceito manifestado em relação às religiosidades afro-brasileiras.
Bom, se uma Lei é criada para dar visibilidade à cultura afro-brasileira, por que ainda assim os escritores(as) negros(as) são excluídos das escolas e de uma matéria em uma revista especializada em Literatura como a Conhecimento Prático? A Profa. Coelho Pereira afirma que “apesar de essa lei não ter saído do papel em muitas escolas brasileiras, ela é uma grande conquista”, por que “a literatura negra começa a ganhar espaço nas escolas”. Mas para qual literatura negra aponta a autora, quais são seus agentes se no artigo de sua autoria nenhum escritor negro é apresentado? Esse é ponto crucial: a invisibilidade dos(as) escritores(as) negros(as). Por causa dessa incompreensível ausência, escorando-me em seu artigo e tratando-se do segmento infanto-juvenil, friso que não tenho nada contra a obra de Rogério Andrade Barbosa, aliás, aprecio bastante, porém faço questão de citar alguns bons livros e seus autores – todos negros – publicados, a maioria recentemente, que seguem as diretrizes da lei 10.639/2003: “A cor da ternura” de Geny Guimarães, “Betina” de Nilma Lino Rodrigues, “Os ibejis e o carnaval” de Helena Theodoro, “Kofi e o menino de fogo” de Nei Lopes, “Omo-obá: histórias de princesas” de Kiussam Oliveira e “Os nove pentes da África” de Cidinha da Silva. Para não ficar exaustiva, encerro a lista apenas para demonstrar que temos escritores(as) negros(as) lançando ótimos títulos nesse segmento.
Faço uma consideração próxima aos autores africanos. Há na matéria “Negro: imagem e semelhança de quem”, pequenas seções nas laterais das páginas. Em uma delas, com o sugestivo título “Curioso”, lê-se o seguinte: “Muitos ficam espantados quando se deparam pela primeira vez com uma fotografia de Mia Couto: embora seja um dos mais proeminentes escritores africanos dos nossos dias, ele é branco” (p. 34). Pois é, o cânone das literaturas africanas de língua portuguesa é praticamente formado por escritores brancos.
Entretanto, quando se olha atentamente para o mercado editorial brasileiro, constata-se que os livros publicados desse segmento são próximos daqueles publicados em Portugal, ou seja, segue-se a política racista dos portugueses em publicar escritores brancos, quando muito, mestiços. Mia Couto, apesar da exaustiva redundância de seus últimos romances, é um excelente escritor como no livro citado na matéria, “Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra”, em “Terra sonâmbula”, e nos contos de “Estórias Abensonhadas” e “Vozes anoitecidas”. Sem motivo aparente, as editoras brasileiras ignoram autores, dentre tantos outros, como os angolanos João Maimona e João Tala; os novíssimos moçambicanos Sangare Okapi e Andes Chivangue; e o cabo-verdiano José Luis Hopffer Almada. Apenas para citar excelentes nomes consagrados, respeitados e premiados da produção contemporânea nos seus países. Sendo assim, bastaria um olhar sensível às obras desses e de outros autores por parte de nossos editores para que em uma apresentação de escritores africanos em sala de aula, a cor da pele não causasse espanto aos alunos. Quem é professor e que já mostrou fotos de autores africanos compreende o que estou falando.
Para finalizar, a contundência de minhas observações é motivada por uma postura sincera, posso dizer indignada, diante de um artigo que se demonstra equivocado em seu conteúdo, e que, por isso, almeja o respeito que nossos escritores negros merecem no meio literário brasileiro. Não poderia ter uma posição de indiferença pelo que li, ainda assim continuarei torcendo para que uma revista respeitável como a Conhecimento Prático: Literatura atente-se para os agentes da literatura afro-brasileira e contribua para retirá-los da invisibilidade que lhes é imposta.
Sem mais,
Ricardo Riso
Pesquisador de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa
CUTI. O leitor e o texto afro-brasileiro. In: < http://www.cuti.com.br/ > Acessado em 24 de janeiro de 2011.

ii FONSECA, Maria Nazareth Soares. Poesia afro-brasileira – vertentes e feições. In: SOUZA, Florentina Souza, LIMA, Maria Nazaré (orgs.). Literatura afro-brasileira. Fundação Palmares e Centro de Estudos Afro-orientais (CEAO), 2006.

iii DUARTE, Eduardo de Assis. “O BILDONGSROMAN afro-brasileiro de Conceição Evaristo.” ALEXANDRE, Marco Antônio (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.
Fonte: Blog Ricardo Riso

 

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