Depois da fofoca e de um cafuné no meu caçula, tentei tirar um cochilo, mas terminei xingando uma cambada de moleques que cantavam “Tindolelê” na rua.
A frase ficou meio maluca, mas essa loucura tem seu método e as palavras em negrito dão uma dica: mostram como, a partir da linguagem (mas não só), nosso cotidiano é atravessado até a última fibra pela herança africana.
Identificar e reconhecer esse legado —impregnado de familiaridade, mas também de invisibilização— é um dos propósitos de “Línguas africanas que fazem o Brasil”, exposição com abertura hoje (24) e em cartaz até janeiro, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo.
“Língua é modo de existir, e o léxico luso-brasileiro é, antes de tudo, estruturalmente, africanizado e indigenizado”, diz à Folha o curador da exposição, o filósofo e músico Tiganá Santana. “Grande parte da população brasileira sabe menos sobre as origens africanas desses vocábulos do que se poderia supor. A colonialidade e o racismo trabalharam (e trabalham) sobre esses cortes e dissociações”, pondera.
Mas não só de palavras derivadas de troncos linguísticos negro-africanos, como o iorubá, o eve-fom e as do grupo bantu, se compõe esse panorama das muitas escritas trazidas da África, que ganharam novas reverberações em solo brasileiro —da religião à música, da vestimenta à arquitetura.
Conjugações
“Línguas africanas” apresenta 15 termos oriundos do continente, impressos em estruturas ovais de madeira, mas também 20 mil búzios, suspensos e distribuídos pelo espaço expositivo. Além disso, nas paredes, vários adinkras remetem ao sistema de escrita do povo ashanti, com símbolos que nos impactam pela óbvia onipresença em portas e janelas de casas Brasil afora.
Em diálogo com essas muitas grafias, também há obras do artista plástico baiano J. Cunha, videoinstalações da artista visual fluminense Aline Motta e esculturas da criadora baiana Rebeca Carapiá.
A exposição mostra ainda como canções populares do país foram criadas a partir da integração entre línguas africanas e o português; textos de Lélia Gonzalez —e o uso do “pretuguês” cunhado pela intelectual; e registros de manifestações culturais afro-brasileiras e de entrevistas com pesquisadores.
“Quisemos informar sobre a construção da cultura brasileira a partir dos pensares, práticas e línguas africanas”, define Santana. “Desfazer imaginários que diluam essa centralidade ética e epistemológica afrorreferente.”