De onde viemos? Exames de ancestralidade genética ajudam a revelar as origens étnicas do Brasil

Teste ajuda a trilhar os caminhos de um país miscigenado e recheado de conflitos raciais – e desvendar o seu passado familiar (através da saliva)

no GQ

Ilustração Victor Amirabile

Cresci escutando histórias de família através dos relatos de meus avós e minha tia Izabela, irmã de minha mãe. Ela possui um arquivo precioso de fotos que remetem ao início do século 20 e uma memória de fazer inveja. Esses relatos, que fazem parte da cultura oral dos povos africanos, eram minhas fontes para tentar encontrar as origens de uma família predominantemente negra. Conseguia formar, com esforço, uma árvore genealógica até meus bisavós maternos e paternos. De onde vieram? Qual teria sido o porto na costa africana que foi o último ponto da Terra-Mãe visto por um parente consanguíneo? Teriam eles dado sete voltas em torno da árvore do esquecimento (gesto religioso que os fazia “esquecer” a vida passada para que fossem para uma nova terra trabalhar de forma forçada)? Teria sangue europeu em minhas veias? Árabe? Indígena? Asiático? Seria possível encontrar algum parente distante que fosse descendente de um antepassado que ficou na África?

A busca se iniciou a partir da indicação de um amigo brasileiro, o consultor AD Junior, residente em Hamburgo, na Alemanha, que havia feito um teste genético pela empresa norte-americana Family Tree DNA (familytreedna.com). Nascido em Juiz de Fora, sul de Minas Gerais, ele sabia que sua família descendia de africanos escravizados que trabalharam em uma fazenda próxima ao local em que cresceu. Mas de que região da África teriam vindo?

 

Ilustração Victor Amirabile

Uma parte dos registros da escravidão no Brasil foram queimados após uma moção de apoio ao despacho de Ruy Barbosa ter sido votada em 1890. Ali se foram informações preciosas que poderiam levar até o passado familiar de milhões de brasileiros. Mesmo descendentes de europeus, árabes ou asiáticos cujos registros de entrada no Brasil e sobrenomes das famílias colaborem para que hoje possam encontrar suas origens acabam sendo surpreendidos com origens desconhecidas ao se depararem com as histórias escondidas no DNA.

Foi em novembro de 2017 que fiz meu registro no site indicado e comprei um kit que chegou pelos Correios. Dois cotonetes, dois recipientes e um envelope especial para enviar os conteúdos de volta para os Estados Unidos. Retirei as amostras passando os cotonetes na parte interna da bochecha ainda em jejum. Envelope postado no mesmo dia. Um mês e meio depois, próximo ao Natal, recebi o resultado online: 49% África (Costa Oeste e Centro-Leste), 36% Europa (Europa ocidental, Ibéria e Bálcãs), 9% Novo Mundo (América do Norte e Central), 4% Oriente Médio (Norte da África) e algumas conexões genéticas com pessoas no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa que já haviam feito o exame na mesma plataforma. Quem terão sido esses europeus tão presentes em meu sangue? Consegui enxergar em cada familiar um pouco do que aquele exame me revelava. Entender de onde vim me ajuda a entender quem sou.

O mundo em mim

O jornalista Hermés Galvão, o editor da GQ Ernesto Xavier e o consultor AD Junior foram em busca de suas origens. O rapper Emicida, nossa capa, também se submeteu ao teste: “Sou praticamente um sommelier de exames genéticos”, brinca.

Ilustração Victor Amirabile

A ancestralidade genética
Estima-se que os primeiros indígenas chegaram ao Brasil há 40 mil anos. Depois, em 1500, Cabral e sua frota desembarcaram em terras brasileiras trazendo os primeiros europeus para cá. A partir de 1580, temos registros dos primeiros negros africanos que seriam escravizados no país. Os fluxos migratórios vindos de diferentes regiões da África variavam de acordo com o período. Após a abolição da escravatura, em 1888, cresceu o fluxo de europeus, provenientes de países como Itália, Alemanha, Espanha ou mesmo da Ásia, como os japoneses, em uma tentativa do governo brasileiro de embranquecer a população. Também chegaram turcos, sírios, libaneses, judeus, árabes, bolivianos, coreanos, chineses. Isso torna o Brasil um caldeirão étnico. Ou seja, não existe “raça” pura, entendeu?

Foi a vontade de desvendar essa variedade encontrada na população brasileira que fez o médico e geneticista Ricardo Di Lazzaro criar – com um colega da faculdade de medicina da USP – a empresa Genera. Fundada em 2010, o laboratório passou a oferecer exames de ancestralidade a partir de 2014. “Começamos sem estrutura, sem investimento, fazendo uma parceria com o Family Tree DNA, enviando as amostras.”

Neste ponto está o que há de mais importante para um exame de ancestralidade genética: o banco de dados. Eles variam de um laboratório para o outro, fazendo com que existam pequenas diferenças de resultados, assim como aconteceu com o rapper Emicida, nossa capa deste mês:  “Sou praticamente um sommelier de exames genéticos”, brinca. O cantor, que não chegou a revelar os detalhes de seus exames, diz que participou de diversas experiências com laboratórios diferentes. “Sou uma mistura bem maluca. Com relação ao continente africano, não é tão preciso. Eles me deram uma resposta que, se eu não me engano, era West Africa (Costa Oeste Africana). Com relação ao hemisfério norte, eles são muito precisos. Foi através deles que eu tive acesso a essa outra parte da minha família”.

Ilustração Victor Amirabile

A Genera, que é o único laboratório brasileiro a oferecer esse tipo de serviço, possui um banco de dados com cerca de 10 mil indivíduos de diferentes regiões do mundo. “Dividimos a África em subgrupos. Nós fizemos uma ponte histórica do Brasil, vendo os grupos [africanos] que vieram para o país. Tomamos o cuidado para termos grupos característicos aqui, como indígenas brasileiros, regiões andinas, amazônica e tupi. Até na Europa tentamos separar Península Itálica, Leste Europeu, bascos, grupos mais específicos”, revela Di Lazzaro.

Cerca de 73% dos indivíduos que fizeram exame no Brasil possuem traços de DNA europeu. Isso revela não apenas o grande fluxo migratório da Europa para o país, mas a desigualdade social e racial, que coloca a população negra com a maioria entre os mais pobres que não conseguem pagar pelo exame – o que não tira o interesse em conhecer sua linhagem. “Essa falta fundamental na compreensão da sua própria história fez com que  eu buscasse por várias vias entender a trajetória da minha família”, conta o historiador e filósofo Jonathan Raymundo, criador do projeto “Wakanda In Madureira”, no Rio de Janeiro. Ele participou de uma pesquisa da UFRJ sobre anemia falciforme (mais comum em pessoas negras) e, em contrapartida, o laboratório revelou resultados em relação à ancestralidade africana. “Minha surpresa foi que minhas buscas apontavam em direção à Angola. Quando deu Benin foi curioso porque não conhecia nada a respeito”.

A surpresa com o resultado pode atingir quem tinha “certeza” sobre a própria origem. O jornalista Hermés Galvão ganhou o exame de presente no Natal há quatro anos. O teste feito através do 23andme, uma empresa dos EUA, mostrou que existia 40,5% do seu DNA no Oriente Médio, sendo mais preciso: 35,8% libanês. A Itália, como ele já sabia, correspondia a 46%, mas de onde viria essa porcentagem tão alta que ele desconhecia? “Não sei se é do meu pai (brasileiro). Não conhecia grande parte da minha família”.

Com a mesma amostra de DNA podem ser feitos diferentes tipos de testes. O exame de Ancestralidade Global é o mais comum e barato (R$ 199 na Genera, R$ 340 no MyHeritage, 99 dólares no 23andme e 79 dólares no Family Tree DNA). Através dele são analisados pontos específicos do DNA chamados de SNPs (variações pontuais ao longo do DNA), dando um painel global da ancestralidade de cada um. Os SNPs variam entre pessoas e populações, possibilitando estimar qual porcentagem de DNA veio de cada região do mundo, formando o mapa-múndi colorido que ilustra esta reportagem.

Outra possibilidade é o exame de linhagem. Através do cromossomo Y (em homens) e DNA mitocondrial (existente em homens e mulheres, mas transmitido pela mãe), pode-se chegar ao que é chamado Eva e Adão de cada indivíduo. Desse modo, é possível desvendar todo o caminho dos seus ancestrais, desde a origem na África até você, revelando o que veio do seu pai e mãe separadamente.

Exames genéticos revelam mais do que origens. Os resultados podem mostrar predisposições genéticas para determinada doença, deficiências de vitaminas ou tipos de exercícios físicos que seriam mais propensos para o organismo de cada um. Investigar o passado pode revelar mais sobre o futuro do que podemos imaginar.

 

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