“De quais mulheres temos falado?”

Era 1852, quando na segunda convenção anual do movimento pelos direitos das mulheres, em Akron, Ohio, estado no centro-oeste dos EUA, Sojourner Truth(1797-1883), abolicionista afro-americana e ativista dos direitos das mulheres, proferia seu discurso histórico: “E eu não sou uma mulher?

Naquele episódio, a ativista negra estadunidense, confrontava uma platéia de mulheres e homens brancos, que se esforçavam em reafirmar estereótipos moldados em um suposto modelo universal de mulher. Com maestria, Soujorner apresentou suas vivências enquanto mulher negra escravizada e fez cair por terra argumentos que insistiam em utilizar um padrão para definir as mulheres:

“…o homem lá fala que as mulheres precisam de ajuda para subir na carruagem, para passar sobre valas e para ter os melhores lugares […]e não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! […] Eu lavrei e plantei e juntei os grãos no celeiro e nenhum homem conseguia passar na minha frente – e não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar tanto quanto qualquer homem (quando conseguia trabalho) e aguentar o chicote também – e eu não sou mulher? Pari cinco crianças e vi a maioria delas ser vendida para a escravidão, e quando chorei meu luto de mãe, ninguém além de Jesus me ouviu – e eu não sou uma mulher?”

A contundente provocação lançada há quase dois séculos, se apresenta atual, pois verificamos que, ainda hoje, a diversidade feminina é desconsiderada.

Aliado ao esforço de se evitar o “seqüestro” da pauta do oito de março, pelo sistema patriarcal e capitalista, que tenta reduzir o dia a homenagens frívolas com flores e bombons, há que ser registrar um reiterado “esquecimento”, até mesmo de agendas feministas, do legado que vem sendo construído pelas mulheres negras.

De fato, a data é um marco de luta, necessário para se evidenciar toda uma agenda que afeta o cotidiano feminino. Por isso fazemos essa provocação: ao nos lembrarmos do oito de março, de quais mulheres temos falado? Quais as temáticas movimentam esse dia que historicamente foi construído para catalisar a luta feminista?

É de longa data o esforço hercúleo, que mulheres negras precisam empenhar para resistir a um cenário tão hostil. Lélia Gonzalez, em 1981, já nos alertava sobre a falta de perspectivas para as mulheres negras, ao afirmar que “ser negra e mulher no Brasil, é ser objeto de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo sexismo a colocam no mais baixo nível de opressão”.

Com Lélia aprendemos a categoria da Amefricanidade, um “sistema etno-geográfico de referência” que nos possibilita identificar, uma experiência comum entre os povos originários e pessoas negras em diáspora, que mesmo em diferentes territórios, resistem historicamente, cada um a seu modo, à presença do sistema de dominação racista branco ocidental, que sendo estrutural contamina a sociedade e suas instituições.

De modo que operando dentro desta tecnologia de opressão, a pauta oficial do oito de março, tem conferido exclusivo e reiterado protagonismo às conquistas capitaneadas por mulheres brancas. Ao passo que desconsideram as estratégias de sobrevivência e resistência elaboradas por mulheres amefricanas e que também culminam em significativas conquistas coletivas.

É essa dororidade, marcada pela ausência, pelo silêncio histórico, pelo não lugar, pela invisibilidade do Não Ser, Sendo(VILMA PIEDADE), e que nos move a exaltar a biografia de duas mulheres negras, que em feliz coincidência, no últimos dias 24 e 25 de fevereiro de 2021, receberam com total merecimento, embora tardiamente, o título acadêmico de Doutora Honoris Causa (por causa da honra): Dona Juscelina e Carolina Maria de Jesus (homenagem póstuma), respectivamente.

Duas mulheres negras, que muito embora, uma viva e a outra tenha vivido, em localizações geográficas diversas, enquanto mulheres negras amefricanas, compartilham experiências comuns, e são expoentes de lutas e conquistas coletivas.

Carolina Maria de Jesus (1914-1977) foi uma das maiores escritoras, compositora e poetisa brasileira, e em autêntico pretuguês, se dedicou desde a infância a registrar o cotidiano do “planeta fome”(ELZA SOARES) em que vivem milhares de pessoas negras, faveladas, tendo como livro mais famoso, Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, publicado em 1960, e que foi traduzido em dezenas de outras línguas, tornado-se um dos livros brasileiros mais conhecidos no exterior. Com sua escrita impactante abriu caminhos e inspirou tantas outras escritoras negras para que registrassem suas escrevivências (CONCEIÇÃO EVARISTO).

O titulo conferido a doutora Carolina Maria de Jesus, com unamidade e aclamação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, é um importante reconhecimento e reparação, vez que o Universo acadêmico permanece inserido em num contexto onde vigora um sistema hegemônico, eurocêntrico e etnocêntrico, e onde o epistemicídio opera para desqualificar os saberes que se formam a partir de outras matrizes de conhecimento.

Ao norte do Brasil, mulheres quilombolas que historicamente vem resistindo com seus corpos e saberes ancestrais, a um contexto necropolítico que reinventa a todo momento novas estratégias de aniquilamento de suas comunidades, também puderam comemorar a merecida concessão de título de Doutora Honoris Causa, a uma de suas griôs: Lucelina Gomes dos Santos – a Dona Juscelina do Quilombo Dona Juscelina, localizado no Município de Muricilândia, Estado do Tocantins, abrangido pela Amazônia Legal.

O titulo também foi apreciado e votado, por unanimidade, pelo Conselho Superior da Universidade Federal do Tocantins (UFT).

O merecido reconhecimento da vida e obra de Dona Juscelina, mulher negra e quilombola nascida na década de 1930, neta de escravizados, parteira, bezendeira, quebradeira de coco, e griô que hoje preside o Conselho de Griots da Comunidade Quilombola que leva o seu nome, vem inspirando as novas gerações de mulheres quilombolas para que continuem assumindo posições de protagonismo na comunidade.

A matriarca através da oralidade e com engajamento social, cultural, espiritual e político e com destacada inteligência estratégica, foi uma das grandes responsáveis pela preservação dos saberes tradicionais e identidade quilombola de sua comunidade, fator decisivo para o sucesso no processo de certificação da Comunidade Quilombola Dona Juscelina, que hoje é uma das 45 comunidades certificadas no Estado do Tocantins.

A matriarca permanece em luta, forjando pontes entre a comunidade e a academia, assim como inúmeras mulheres quilombolas, que tecem as mais diversas estratégias para a conquista definitiva do direito a titulação de suas terras, conforme estabelece o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Decreto 4.887/2003 e que foi declarado válido na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) Nº 3.239/2004.

Sobretudo, como nos fala bell hooks “quando pessoas falam sobre a “força” de mulheres negras, referem-se à maneira como percebem que mulheres negras lidam com a opressão. Ignoram a realidade de que ser forte diante da opressão não é o mesmo que superá-la, que resistência não deve ser confundida com transformação. Com freqüência estudiosos da experiência das mulheres negras confundem essas questões. A tendência que começou no movimento feminista, a de romantizar a vida da mulher negra, refletiu-se na cultura como um todo. O esteriótipo da mulher “forte” já não era mais visto como desumanizador, tornou-se a nova marca da glória da mulher negra”

A força das mulheres negras merece ser celebrada, nossos passos vem de longe, mas novas e permanentes estratégias de lutas, urgem serem traçadas e encampadas por toda a sociedade.

E muito mais do que exaltar personalidades, as conquistas das Dra Lucelina e Dra Carolina Maria de Jesus, representam o exemplo, dentre tantos outros que também merecem ser exaltados, de que quando uma mulher negra se movimenta, toda a sociedade se movimenta com ela.

E tão importante quanto, é urgente evidenciar neste oito de março, que mesmo liderando lutas coletivas, as mulheres faveladas, quilombolas, quebradeiras de coco, ribeirinhas e indígenas, permanecem sendo impactadas pelas necropolítica (ACHILLE MBEMBE) que intersecciona gênero, raça, território e localização geográfica para conferir acesso limitado a emprego e renda, a segurança alimentar, a moradia digna, aos serviços de saúde e educação. De forma a mantê-las mais expostas a violência doméstica e familiar, a violência obstétrica, e dificultado o seu acesso as instituições públicas, o que as tornam alvos permanentes do racismo e machismo institucional, entre tantas outras vulnerabilidades.

É preciso celebrar a diversidade feminina, e reafirmar que a luta pelos direitos das mulheres, a uma vida livre e segura para si e por conseguinte para toda a sociedade, é uma luta coletiva, que se renova e se reinventa diuturnamente, como nos ensina Ângela Davis, é uma luta constante.

Denize Souza Leite é defensora pública do Estado do Tocantins, integrante da Comissão da Mulher e da Comissão da Igualdade, Étnico-Racial da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos e integrante da ColetivA de Mulheres Defensoras Públicas do Brasil.

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