Debate no Brasil entra em outro patamar

Mudança de ares é perceptível. Não apenas entre os protagonistas da transição

A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas urnas não completou uma semana e, à parte os soluços golpistas de viúvos do derrotado, o debate político-econômico-social no Brasil já mudou de patamar. A transição para o novo governo começou, com o vice eleito, Geraldo Alckmin (PSB), no leme. O ex-governador do Piauí, senador eleito e ministeriável Wellington Dias (PT), entrou em diálogo com o relator do Orçamento, senador Marcelo Castro (MDB), para acomodar nas contas de 2023 as promessas de campanha do presidente eleito. Prioridade para viabilizar, na reconversão do Auxílio Brasil em Bolsa Família, o benefício de R$ 600, mais R$ 150 por criança e a correção do salário mínimo acima da inflação, que Jair Bolsonaro ficou devendo.

A mudança de ares é perceptível. Não apenas entre os protagonistas da transição de poder, mas entre quem, por dever de oficio, passou quatro anos — e dois meses da campanha mais demorada que o mandato inteiro —discutindo o nada, tentando explicar o inexplicável. Foi uma época adoecedora. Parabéns aos que sobrevivemos.

A política social do governo Bolsonaro, quando não foi inexistente, foi rasa. Desde a criação do Auxílio Emergencial, o presidente da República nada se envolveu quanto ao real significado dos programas de renda mínima ou superação da pobreza e da miséria. Opinou como participante de leilões, aumentando o valor dos lances — no caso, dos benefícios — para colher popularidade. Foi assim que, em 2020, o auxílio saiu de R$ 200 (proposta original da equipe econômica) para R$ 500 (valor sugerido pelos parlamentares) e, por fim, alcançou os R$ 600. Os R$ 100 adicionais foram tão somente para o capitão dar a última palavra.

O Auxílio Brasil, lançado há um ano, perdeu foco e consistência. Implantado de forma irresponsável, limou a participação dos centros de assistência social de estados e municípios, desviou-se da centralidade das famílias. As exigências em saúde e educação, que apontavam para a superação da pobreza e da miséria, desapareceram. Não por acaso, a cobertura vacinal dos miúdos despencou, e a pólio, erradicada após décadas de esforço do Programa Nacional de Imunizações, os espreita. O Ministério da Educação não foi capaz de pôr de pé um programa para, com estados e municípios, recuperar a aprendizagem perdida no período mais duro da pandemia. Nem a verba da merenda, essencial à segurança alimentar dos estudantes, foi atualizada.

Gastamos tempo discutindo obviedades, como o desprezo de Bolsonaro e seus apoiadores radicalizados pela democracia, o uso inaceitável da expressão “pintou um clima” na abordagem de um homem idoso a adolescentes refugiadas, a violência política dos bolsonaristas aficionados, caso do assassino Jorge Guaranho e dos armamentistas Roberto Jefferson e Carla Zambelli. Tivemos de reafirmar princípios civilizatórios consagrados. Quem imaginou que, dia sim, outro também, brasileiros comprometidos com direitos humanos teriam de repetir que misoginia, racismo, LGBTfobia, xenofobia, aporofobia não são toleráveis?

Página virada, em vez de explicar por que não há justificativa para o Brasil ser pária nas relações internacionais, enfileiramos demonstrações de interesse de velhos parceiros da diplomacia e do comércio exterior de se reaproximar do país. Governos de EUA, China, França, Argentina, Canadá, Chile, Alemanha, Espanha, Itália e até Rússia e Ucrânia reconheceram a legitimidade do pleito e a credibilidade do sistema eleitoral.

A Noruega não esperou 24 horas para anunciar o desbloqueio do Fundo Amazônia no ano que vem. O presidente eleito foi convidado para a COP27, no Egito. Lá deverá anunciar o nome da próxima titular do Ministério do Meio Ambiente — cotadas estão Marina Silva e Izabella Teixeira, ambas ex-titulares da pasta, e Suely Araújo, ex-Ibama. Lula poderia aproveitar a oportunidade para também revelar quem estará à frente do futuro Ministério dos Povos Originários. Mantida a denominação, será manifestação inequívoca do novo governo contra a tese do Marco Temporal, sob julgamento no Supremo Tribunal Federal.

Para o salário mínimo, valor referência para o emprego com e sem carteira assinada, além dos benefícios sociais, em quatro dias saiu a equação de ganho real, abandonada pelo atual presidente desde o primeiro ano de mandato. Wellington Dias antecipou ao “Estúdio i”, na GloboNews, que a intenção é dar ao piso, além do INPC, tradicional indexador de negociações salariais, a variação média do PIB nos cinco anos anteriores. Em 2023, o aumento acima da inflação deverá ser de 1,3% a 1,4%. Resgata o modelo inaugurado em 2007 no segundo mandato do presidente ora eleito.

Avolumam-se nomes para a equipe econômica. Da política, Fernando Haddad, Alexandre Padilha, o próprio Wellington Dias, Aloizio Mercadante, Jean Paul Prates; da economia, Henrique Meirelles, Marcos Lisboa, Felipe Salto, Gabriel Galipolo, Arminio Fraga e Pérsio Arida, um dos pais do Plano Real, que têm dialogado intensamente. É auspicioso que a política econômica concentrada nas mãos de Paulo Guedes, desde 2019, resgate o contraditório em novas pastas, da Fazenda ao Planejamento, da Indústria ao Trabalho. Diálogo engorda e faz crescer.

Bem-vinda a disputa pelo Ministério da Educação, vazio de ideias e tomado de retrocesso, nos anos Bolsonaro. Simone Tebet, Camilo Santana, Izolda Cela são nomes apontados como possíveis titulares. O craque Ricardo Henriques, que já secretariou a pasta, foi escalado para a transição da área mais importante do futuro governo. O eleitorado, nas pesquisas, pôs educação e saúde no topo das prioridades. Filé e picanha são esses.

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