Circuncisão é estratégia bem sucedida contra Aids na África do Sul
Por Manuel Ansede, do Ópera Mundi
A província sul-africana da Zululândia, com seu tratamento intensivo e 22% dos homens circuncidados, está se convertendo em um laboratório para o desenvolvimento de uma estratégia mundial contra o vírus da AIDS. Mais de três milhões de homens africanos compareceram voluntariamente para realizar a circuncisão, a fim de evitar infecções pelo vírus HIV.
Ver dois estudantes universitários, cujos prepúcios acabam de ser extraídos, posando como rappers sorridentes em um cartaz que promove a circuncisão masculina pode parecer chocante, mas é uma imagem lógica na Zululândia, província sul-africana com um dos mais altos níveis de infecção pelo vírusda Aids no mundo todo. Ali, uma em cada quatro pessoas vive com o HIV. No caso das mulheres na casa dos 30 anos, a porcentagem alcança a estarrecedora cifra de 56%.
Os jovens são Mxolisi Mazibuko e Sithabiso Zwane, estudantes de comércio na universidade local. Muitos de seus colegas não se submetem à circuncisão por medo de que os prepúcios extraídos venham a ser usados em rituais de bruxaria, de acordo com a instituição. Porém tal medo é cada vez mais excepcional. Mais de 175 mil homens já passaram por salas de cirurgia na província.
A Zululândia, como outras regiões da África, está sendo submetida a uma campanha de circuncisão massiva dos homens. Em dezembro de 2011, cerca de 1,5 milhão de africanos havia voluntariamente se apresentado para a circuncisão em centros especializados, segundo os últimos números do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre o HIV/Aids. Em dezembro de 2012, o número já havia mais do que dobrado: 3,2 milhões de homens.
Além de garantir o tratamento contra o HIV para os habitantes da Zululândia, as autoridades e a ONG Médicos Sem Fronteiras realizam circuncisões em homens que a solicitam voluntariamente. Esta simples operação reduz em 60% o risco de transmissão do HIV, ao retirar uma mucosa por meio da qual o vírus penetra com facilidade. “Para promover a circuncisão, criam-se locais onde qualquer homem pode vir para fazer uma circuncisão médica”, explica a médica espanhola Helena Huerga, membro do Epicentre, o centro de pesquisa do Médicos Sem Fronteiras
Resultados
Huerga, nascida em Madrid em 1971, coordenou na Zululândia um estudo sobre os efeitos do tratamento em grande escala de pessoas com HIV. Os resultados, recentemente apresentados em um congresso especializado em Boston (EUA), são muito animadores. Cerca de 90% das pessoas tratadas há mais de seis meses conseguiu a supressão viral, estado em que a presença do vírus baixa até níveis indetectáveis no sangue, minimizando o risco de transmissão. Levando-se em conta a presença generalizada do vírus na região, a taxa local de novas infecções chega a ser de apenas 1,2% ao ano.
O estudo, do qual participaram 5.650 pessoas adultas, constatou o êxito das campanhas de circuncisão. “Uma porcentagem de 22% dos homens estavam circuncidados no momento em que fizemos o estudo, a maioria deles era jovem. Não há muçulmanos na região, a principal religião é o cristianismo, de modo que o número deve-se, definitivamente, ao fato de que aceitaram fazer a ciruncisão”, detalha Huerga.
O centro de operações da ONG foi Eshowe, um povoado assim chamado pelo som do vento ao acariciar as folhas das árvores próximas. Huerga ouviu esses cantos de sereia vindos dos bosques (“eshowe, eshowe, eshowe”) muitas vezes nos últimos dois anos. Eshowe e suas zonas rurais vizinhas, tomadas por plantações de cana-de-açúcar, são um laboratório para o desenvolvimento de uma estratégia mundial para a derrota do vírus da Aids, que desde o início da epidemia acabou com a vida de cerca de 36 milhões de pessoas, mais do que o dobro do número de baixas na Primeira Guerra Mundial.
O Ministério da Saúde sul-africano e a Médicos Sem Fronteiras uniram forças para levar os remédios contra o HIV até as regiões mais remotas, facilitando os exames diagnósticos gratuitos com a finalidade de localizar o maior número possível de pessoas infectadas. Três de cada quatro pessoas que precisam de tratamento o recebem.
Medicamentos
“Uma pessoa que recebe tratamento e tem o vírus suprimido no sangue apresenta muito pouca chance de transmitissão”, celebra Huerga, que já passou por países como Somália, Libéria, Quênia e República Centro-Africana. Neste último, viu “um hospital onde a metade das pessoas morreriam de Aids” e pouco ou nada se podia fazer por elas. “Há lugares nos quais os tratamentos ainda não chegam e as pessoas morrem sem que sequer tenham recebido um diagnóstico”, denuncia. O estudo da Zululândia é um dos poucos que analisou os efeitos do tratamento contra o vírus da Aids, a chamada terapia antirretroviral, em comunidades africanas reais assoladas pelo patógeno.
“Aqui eu vi muita gente sendo tratada e com boa saúde. Isto demonstra que é possível tratar corretamente muita gente e nos dá um pouco de otimismo, porque se pode ir até mesmo mais longe”, defende a médica.
Em 2012, quase 10 milhões de pessoas com HIV em países em desenvolvimento tiveram acesso à terapia contra o vírus, um comprimido ao dia, que normalmente custa 100 euros ao ano. Ainda assim, quando o tratamento de primeira linha não funciona, é preciso recorrer a novos fármacos e os preços são bem maiores. Um destes medicamentos, o raltegravir, da empresa farmacêutica Merck, chega a custar 10.140 euros por pessoa ao ano na Armênia, por exemplo, um país em que o salário mínimo é pouco maior do que 80 euros por mês.
Farmacêuticas
“Não recebemos muita colaboração das grandes empresas farmacêuticas. Os fármacos genéricos produzidos na Índia têm preços mais acessíveis e, por isso, trabalhamos com eles”, observa Huerga. A médica lembra que outros 16 milhões de pessoas precisam de tratamento e não o recebem, segundo a Organização Mundial de Saúde. “Ainda há muito a ser feito, porém esse é o objetivo que temos que alcançar”.
O sucesso na Zululândia pode aproximar este objetivo. Segundo o estudo de Huerga, a Médicos Sem Fronteiras irá ajudar as autoridades a iniciar um movimento mais ambicioso. No caso do HIV, paradoxalmente, espera-se que a infecção se amplie para que o tratamento seja iniciado. O vírus ataca um tipo dos glóbulos brancos que nos defendem das infecções, os CD4. Se uma pessoa com boa saúde apresenta 1000 CD4 por milímetro cúbico de sangue, o que se esperava, até agora, era que esse número caísse até 350, para se iniciar o tratamento. A Médicos Sem Fronteiras administrará o tratamento a partir dos 500, de acordo com as últimas diretrizes da OMS.
“É muito difícil pensar em erradicar a doença, porém podemos controlá-la. Podemos conseguir que haja cada vez um número menor de novas infecções e que as pessoas que já estão infectadas vivam uma vida longa e boa, assim como as pessoas que não estão infectadas”, diz Huerga.
Tradução Henrique Mendes