Decisão que absolveu PMs diz que ouvir testemunhas era “irrelevante” para caso

Juíza afirmou que prova técnica que sobrepõe à testemunhal

Do Correio 24 Horas

A decisão da Justiça que absolveu os nove policiais militares envolvidos na morte de 12 pessoas no Cabula, em fevereiro deste ano, foi publicada nesta segunda-feira (27) no Diário Eletrônico de Justiça. Em “julgamento sumário”, os nove PMs foram absolvidos, por terem agido em “legítima defesa” durante o curso de uma ação policial normal, diz a decisão.  O Ministério Público já informou que pretende recorrer da decisão.

A juíza substituta Marivalda Almeida Moutinho, da 2ª Vara do Tribunal do Júri, relata a denúncia do Ministério Público da Bahia, que afirmou ter se tratado de uma execução por parte dos PMs, e justificou o julgamento antecipado, citando previsão do artigo 3º do Código de Processo Penal.

“Cabível a antecipação do julgamento, quando estes elementos não se fizeram presentes (indícios de autoria e da prova da materialidade), impossibilitando, até mesmo o oferecimento da denúncia”.

Reconstituição da ação foi realizada pelo DPT no dia 29 de maio
Reconstituição da ação foi realizada pelo DPT no dia 29 de maio

As testemunhas do caso não foram ouvidas em juízo. Para a juíza, as provas e inquéritos anexados apresentam-se “extremamente convincentes (…) Não soa plausível que a produção de prova testemunhal sobreponha a prova técnica”. Ela classifica a “prova técnica” como “superior às demais, especiais”. Para a juíza, ouvir testemunhas neste caso se mostra “irrelevante, impertinente e protelatória”.

A decisão cita que embora as vítimas não tivessem antecedentes criminais “não estão isentas de terem envolvimentos” com prática de crimes, pois estavam com armas de fogo e drogas, além de explosivos. Cita ainda que as vítimas tinham sinais de disparos de arma de fogo nas mãos.

“Tratou-se de um confronto armado, em que as vítimas ao portarem arma de fogo e estarem camufladas, preparadas para práticas de ação delitiva, também estariam para o caso de serem surpreendidas na preparação da execução”, argumenta.

Para ela, a versão apresentada pelos PMs foi corroborada pelo inquérito policial, mostrando-se “coerente” com as prova periciais. “Todos os acusados agiram sob o manto da excludente de ilicitude prevista no artigo 25 do Código Penal Brasileiro, em legítima defesa”, diz o texto, afirmando que os PMs acusados foram “agredidos moral e fisicamente”, vendo-se na necessidade de se defender.

“Atropelo”
O promotor Davi Gallo voltou a criticar a decisão judicial e informou que irá recorrer assim que o Ministério Público for intimado. “Esse é um processo que ela fez, ela e polícia. Ela ignorou completamente o Ministério Público. Para ela só vale o que é do inquérito”, afirmou.  Ele criticou o uso do julgamento antecipado lide, um procedimento mais rápido. “Não existe isso em um processo penal. Ela fez uma miscelânea de códigos civil e penal. O que essa senhora fez é uma aberração jurídica. Ela sequer ouviu as vítimas que sobreviveram, que inquérito é esse?”.

A inclusão do caso do soldado Luciano Santos de Oliveira, que não tem nenhuma ligação com o crime que aconteceu no Cabula, também foi criticada mais uma vez. “Esse caso não tem nada a ver, nada a ver. Nós colocamos como exemplo e ela incluiu e inocentou, de tanta vontade que estava”, afirma o promotor. “A legítima defesa no processo, ela tem que estar sem dúvidas. Mas para ela simplesmente valeu ela e o inquérito policial, ignorou completamente o Ministério Público”.

No final de semana, o promotor  disse que a decisão “atropela todas as regras processuais”. “Ela cometeu a maior insanidade do mundo, que foi pegar o Código de Processo Civil para julgar. Ela tinha que instruir o Código Penal, mas desprezou o artigo 415 dele”, afirmou, referindo-se ao artigo que dispõe sobre absolvições.

O artigo 415 do Código de Processo Penal prevê absolvição sem os procedimentos usuais apenas nos seguintes casos: quando provada a inexistência do fato; quando provado que o acusado não é autor ou partícipe do crime; quando o fato não constituir crime, ou quando for demonstrada causa de isenção de pena ou de exclusão do crime. “No processo penal, não se pode fazer isso (decisão), antes de instruir o processo, das audiências. Tem que ouvir as partes e instruir o processo”, afirmou no final de semana Gallo.

Casas vizinhas ao local onde aconteceu a ação foram atingidas pelos disparos (Foto: Marina Silva/CORREIO)
Casas vizinhas ao local onde aconteceu a ação foram atingidas pelos disparos
(Foto: Marina Silva/CORREIO)

Decisão criticada e defendida
O diretor executivo da Anistia Internacional, Átila Roque, classificou a decisão como parcial. “Indignação com a recorrente parcialidade da justiça no Brasil, onde as vítimas de homicídios cometidos pela polícia são sempre tratadas antes de qualquer investigação e a absolvição dos policiais é sempre rápida. Cabula é a cara do Brasil”, escreveu, ontem, em uma rede social.

Também pelas redes sociais, o presidente da ONG Reaja ou Será Morto(a), Hamilton Borges, compartilhou a mesma indignação e afirmou que continuará acompanhando o caso. “Não vamos parar. Vamos seguir lutando”, declarou.

Já o vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil na Bahia (OAB), Eduardo Rodrigues, disse que vai aguardar a publicação da sentença e espera que o MP recorra da decisão favorável aos PMs, que alegaram legítima defesa. “A OAB aguarda que a sentença seja publicada para termos uma ideia real disso”, resumiu.

Justiça absolveu PMs envolvidos na morte de 12 pessoas no Cabula (Foto: Evandro Veiga/CORREIO)
Justiça absolveu PMs envolvidos na morte de 12 pessoas no Cabula
(Foto: Evandro Veiga/CORREIO)

Enquanto as entidades repudiavam a sentença, os advogados de defesa que representam os acusados e também advogam em outros processos envolvendo policiais – como o Caso Geovane, denunciado pelo CORREIO – comemoraram a decisão judicial e ainda classificaram os policiais como heróis.

“Desde o início, quando conversamos com nossos clientes, tínhamos certeza da inocência deles. Quem tem que comemorar a decisão da juíza é a sociedade baiana, porque os policiais que estavam lá no Cabula arriscaram suas vidas no exercício da sua profissão”, afirmou o advogado Dinoemerson Nascimento.

Ainda segundo ele, a “decisão mostra que o Judiciário baiano está sensível à atividade do policial militar”. Para o advogado Mateus Medeiros, a sentença não foi rápida, já que o prazo dado pela Justiça para o parecer do caso era de 81 dias e a magistrada levou mais de 60 para concluí-lo. “É uma juíza séria e imparcial. Inclusive, já condenou outros clientes meus”, salientou Medeiros.

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