Tudo junto e misturado nos discursos justificadores de massacres
Alguma coisa está fora da ordem
Caetano Veloso
Por Bartira Macedo de Miranda Santos, do Empório do Direito
“A questão criminal” é o título de um livro de Eugenio Raúl Zaffaroni, composto de uma série de artigos que ele publicou no diário argentino, a partir de 2011. O primeiro deles tem como título “A academia, os meios de comunicação e os mortos”. O título já nos leva a indagar da(s) ligação(ões) entre o saber produzido pelas ciências criminais e as mortes que de alguma forma resultam desse saber (seja preparando-as, seja justificando-as), embaladas pelos meios de comunicação.
A tríade “saber-mídia-mortos” forma a simbiose do poder punitivo: o poder punitivo precisa de um saber que lhe dê sustentação; esse saber é reproduzido pela mídia, formando consensos; da atividade das funções concretas desse saber/poder punitivo resultam mortos; as mortes, por sua vez, precisam ser justificadas; invocam-se para tanto os consensos produzidos pela mídia… e assim caminham os discursos justificadores de massacres.
Há uma passagem, no livro de Zaffaroni[1], onde ele afirma que se tivesse perguntado, para a sua avó, qual é a realidade da questão criminal, ela teria lhe respondido que a única realidade nisso tudo são os mortos. E acrescenta:
E isso é mesmo sem dúvida: a única verdade é a realidade, e a única realidade na questão criminal são os mortos. Costuma se afirmar que os mortos não falam, o que é verdade no sentido físico, mas os cadáveres dizem muitas coisas que esta sonora afirmação oculta. Às vezes, chegam a nos dizer quem matou (pelas pistas que o autor deixa no cadáver), mas o cadáver nos diz sempre que está morto. Na questão criminal, o que na verdade fazemos é emudecer os mortos, ignorar que nos dizem que estão mortos.
A “Chacina do Cabula” – uma operação da Polícia Militar, no Bairro do Cabula, em Salvador, realizada em 5 de fevereiro de 2015 – resultou em 12 (doze) cadáveres: Adriano de Souza Guimarães, 21 anos; Jeferson Pereira dos Santos, 22; João Luís Pereira Rodrigues, 21; Bruno Pires do Nascimento, 19; Vitor Amorim de Araújo, 19; Tiago Gomes das Virgens, 18; Caique Bastos dos Santos, 16; Evson Pereira dos Santos, 27; Agenor Vitalino dos Santos Neto, 19; Natanael de Jesus Costa, 17; Ricardo Vilas Boas Silva, 27 e Rodrigo Martins Oliveira, 17.
Segundo o que foi divulgado pela imprensa local, a Anistia Internacional, com base nos laudos periciais de exame cadavérico, constatou que havia indícios evidentes de execução[2]. De acordo com as análises, a maioria dos disparos foi realizada de cima para baixo. Além disso, alguns mortos apresentavam perfurações na palma da mão, braços e antebraços. A maioria dos cadáveres apresentava marcas de tiros disparados a curta distância, de menos de 1,5 metros. Há casos em que o projétil entrou na base da cabeça e saiu pelo queixo. Foram identificados tiros que atravessaram, simultaneamente, antebraços e braços. Disparos desse tipo indicam que as vítimas foram mortas em posição de defesa, sentados, deitados ou ajoelhados.
Ao comentar o episódio, o Governador Rui Costa[3] não se deu ao disfarce de dizer que o caso seria investigado. Ao contrário, em poucas horas após a chacina, saiu em defesa dos policiais e comparou a situação com a de um artilheiro na frente do gol: “É preciso ter a frieza e a calma necessárias para tomar a decisão certa. É como um artilheiro na frente do gol, que tenta decidir, em alguns segundos, como é que ele vai botar a bola dentro do gol, pra fazer o gol, comparou. Depois que a jogada termina, se foi um golaço, todos os torcedores da arquibancada irão bater palmas e a cena vai ser repetida várias vezes na televisão”.
Na mesma ocasião, o Secretário de segurança pública, por sua vez, justificou que “a polícia deve agir com rigor, deve ser dura”.
Mesmo após a divulgação dos Laudos periciais, que indicavam haver execuções sumárias, o Governador[4]continuou na defesa dos policiais: “Continuo com a postura de presunção da inocência das pessoas que estiverem atuando em defesa da sociedade”.
A justificação do massacre teria sido apenas mais um escândalo esquecido se tivesse contado apenas com os discursos do Poder Executivo.
Considerando que o massacre ocorreu no dia 05 de fevereiro de 2015, uma sentença relâmpago, prolatada em 24 de julho de 2015, promete estarrecer a comunidade jurídica, enquanto muitos estarão aplaudindo a chancela do Poder Judiciário a mais um massacre, como se a violência praticada pelo Estado, e com o aval dos poderes constituídos, não fosse um atentado contra todos os cidadãos.
Ao todo, nove policiais foram denunciados pelos doze homicídios. A denúncia foi oferecida em maio e recebida em junho. Mas, já neste mês de julho, no último dia 24, sexta-feira, o caso foi encerrado, por sentença proferida pela juíza Marinalva Almeida Moutinho, em substituição na 2ª Vara do Júri. Os policias foram absolvidos e, para tanto, a juíza buscou fundamentar a decisão no Código de Processo Civil, indevidamente aplicado analogicamente, e entendendo que o caso não precisa de produção de provas – o que demonstra a sua predisposição e parcialidade para o julgamento:
Assim, tratando-se o processo penal de fatos considerados típicos na Lei Penal, e baseado em indícios, pelo menos suficientes de autoria e da prova da materialidade, cabível a antecipação do julgamento, quando estes elementos não se fizerem presentes, impossibilitando, até mesmo o oferecimento da denúncia, não há dúvidas de que, deve ser aplicado analogicamente o julgamento antecipado da lide, art. 3º do CPP: “Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”, como dispõe o Código de Processo Civil, em seu art. 330, inciso I, in verbis: “Art. 330. O juiz conhecerá diretamente do pedido, proferindo sentença: I – quando a questão de mérito for unicamente de direito, ou, sendo de direito e de fato, não houver necessidade de produzir prova em audiência”[5].
Chama atenção a interrupção do processo de forma tão abrupta e prematura (pois nem todas as defesas preliminares haviam sido apresentadas), num caso de denúncia que envolve tantos réus e vítimas, com fortes indícios de execução sumária, numa chacina em que o poder público montou de imediato todo um espetáculo para defender a ação mortífera dos policiais.
A competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida é do júri popular, cujo procedimento não prevê o julgamento antecipado, podendo haver a absolvição sumária, após realizada a instrução e apresentadas as alegações finais. O julgamento surpreende porque a juíza utilizou o Código de Processo Civil para aplicar uma regra do procedimento ordinário, que não era aplicável, tento em vista a previsão de regra específica no art. 415 do Código de Processo Penal.
Não era a situação do caso em comento, pois, além de não satisfeita a regra do art. 397, caput, do CPP, pela não apresentação das defesas preliminares, o que configura a nulidade da sentença pelo erro no procedimento; o caso apresenta acusação plausível – de que houve massacre e execução sumária e deveria ser julgado pelo juiz natural, o júri popular.
Mas, para justificar a violação das regras do processo penal e dar uma roupagem “jurídica” à chancela judicial ao massacre, a sentença invoca a “ciência” e a “hermenêutica”, fazendo o que quer na manipulação dogmática do material legislativo. Tudo isso para subtrair – apressadamente – o julgamento do júri popular e evitar que que os acusados prestem contas de seus atos. Assim, a decisão é muito mais “política” (porque envolve relações de poder, no caso, o poder de matar) e não “jurídica”, baseada no direito vigente. Tanto é assim que na sentença se diz:
O direito é vida e o juiz, por lidar com a vida e a liberdade dos cidadãos, não pode ser um autômato na aplicação da Lei, pois dele a difícil função de julgar exige vivência e sensibilidade extrema.
Assim, não há obstáculo ao julgamento antecipado da lide e consequente absolvição sumaria dos acusados, por se mostrar irrelevantes, impertinentes e protelatórias as provas de inquirição de testemunha em Juízo.
É dizer: pode o Juiz se convencer em qualquer direção, a partir do livre exame do material probatório disponível.
As vítimas, embora não tivessem registro de antecedentes criminais, como mencionado na denúncia, não estão isentas de terem envolvimentos em práticas de condutas delitivas…
Ou seja, a versão apresentada pelos acusados possui todos os elementos de estar mais próxima do que realmente ocorreu, em razão da coerência lógica na sequência dos fatos e harmonizando os momentos dos disparos, pelas vítimas e pelos policiais, com os elementos encontrados no local do fato.
Para medir a adequação ou demasia da defesa, não se deve fazer o confronto entre o mal sofrido e o mal causado pela reação, que pode ser sensivelmente superior ao primeiro, sem que por isto fique excluída a justificativa da legitima defesa.
Assim como o Governador elogiou os policiais pelo bom serviço, a sentença penal também passa seu recado: matar é legítimo, pois o estão fazendo em defesa da sociedade e os policiais que o fizerem terão o aval do Estado-Juiz.
O que está por detrás da argumentação é o sentimento de que, na guerra contra o crime, a juíza está “lutando do lado justo”, como descreve Alessandro Baratta[6], ao criticar a ideologia da defesa social.
O discurso de defesa social é um discurso legitimador de massacres. É um discurso que divide a sociedade em dois grupos aparentemente bem distintos: as pessoas de bem e os criminosos, como se as “pessoas de bem” também não praticassem crimes. O discurso é funcional para os massacres, porque deixam claro quem deve morrer: eles, os criminosos. Todos? Não, só os pobres.
Cabe indagar quem faz parte da sociedade que a violência estatal julga defender. Como entender que o Estado defende uma parte da sociedade contra a outra? Como podemos entender que algumas pessoas devem ser mortas para o benefício de outras?
Os discursos legitimadores de massacres só sobrevivem porque contam com o apoio da população, embriagada pela grande mídia que, a todo dia, repetindo incansavelmente casos de violência, exigem maior rigor e mais punição. Enquanto seus direitos são vilipendiados, a população estará nas ruas pedindo o fim da impunidade, ou seja, mais punição, ao mesmo tempo em que vai fornecendo seus próprios cadáveres, a conta-gotas.
Os policiais, por sua vez, são exaltados como heróis, que arriscam a vida em defesa da sociedade. São eles que também morrem na insana guerra contra o crime e parece que ainda não surgiu um discurso mais eficaz para convencê-los a doar seus cadáveres para a segurança dos “homens de bem”. Desconfio que não morram felizes, se lembrarem de suas famílias e órfãos. Mas, longe de exigirem do Estado e dos comandos policiais ações e políticas públicas de segurança, travarão, eles mesmos, muitas vezes por conta própria, a tarefa igualmente insana de “limpar a sociedade”, matando os “criminosos” (pobres).
As vítimas do Cabula, no entanto, não tinham nenhuma acusação contra si. Este é o perigo da legitimação do massacre. Cada vez mais, ele vai se expandindo para justificar a morte de pessoas que não fizeram nada além de nascerem negros e pobres. No fim, a causa da morte é essa mesma. Mata-se não mais porque são criminosos, mas porque se presume que irão tornar-se criminosos. Quando se chega a esse ponto, ninguém está a salvo. Mas o medo da criminalidade, diariamente alimentado pela mídia, continua justificando a barbárie.
E os juízes? O que se espera deles? É legítimo esperar que os juízes entendam que os cadáveres tinham direito a um devido processo penal e a um julgamento, antes de serem sumariamente executados e massacrados. É exigível dos juízes a compreensão de que da mesma forma que não era aplicável aos jovens do Cabula a pena de morte, é inaceitável a morte sem pena.
É inadmissível que os juízes – diante da realidade dos cadáveres – permaneçam com suas togas, chancelando massacres, como se não tivessem nenhuma ingerência na produção de mortos.
Parece difícil que os juízes entendam que a substância do poder massacrador tende a crescer se não lhes impõe um limite. São os juízes que detém o poder de fazer cessar a máquina punitiva, pois possuem – em sua caneta e em suas decisões – o sinal de trânsito que indica a luz vermelha que interrompe o poder punitivo e a luz verde, que habilita a sua continuação. Ao abrir mão de exercer os necessários limites ao poder punitivo, deixando-o produzir massacres, os juízes abdicam de sua própria função. Em assim agindo, rompem a balança da pobre justiça e aproveitando que ela é cega, toma-lhe a espada para golpear quem bem quiser.
A chacina do Cabula, assim como o caos na segurança pública, é uma orquestra sem maestro. Ninguém é responsável. Não fossem os cadáveres, o sistema penal ia nos dizer que tudo está em ordem. Mas, finalmente, são justamente os cadáveres que nos dizem que alguma coisa está fora de ordem.
Notas e Referências:
[1] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. A questão criminal. Rio de Janeiro: Revan, 2013, p. 11.
[2] http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/morte-de-12-homens-no-cabula-foi-execucao-diz-mp-policiais-serao-denunciados/?cHash=9cc0567b569bdbe83b2aa06242ec07f5
[3] http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/e-como-um-artilheiro-em-frente-ao-gol-diz-rui-costa-sobre-acao-da-pm-com-treze-mortos-no-cabula/?cHash=29aec7dc0780c803119bd08a679425a9
[4] http://www.correio24horas.com.br/detalhe/noticia/morte-de-12-homens-no-cabula-foi-execucao-diz-mp-policiais-serao-denunciados/?cHash=9cc0567b569bdbe83b2aa06242ec07f5
[5] Sentença dispomível em file:///C:/Users/Bartira/Downloads/CABULA.pdf
[6] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002.
Bartira Macedo de Miranda Santos é professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Federal de Goiás, é Pós-doutoranda pela PUC-GO e bolsista Capes. Autora do livro Defesa Social: uma visão crítica, 2015, pela Coleção Para Entender Direito (www.paraendetenderdireito.com.br).