Só descolonização da subjetividade trará mudança à América Latina, diz Walter Mignolo

Para o pesquisador argentino, a criação de Estados nacionais após os movimentos de independência apenas abalou a ordem mundial moderna/colonial, mas só a descolonização do ser e do saber levará a uma mudança.

Deutsche Welle: Os movimentos de independência na América Latina completam 200 anos. Mas até que ponto é historicamente correto falar em independência? Seria possível unificar os movimentos de independência na América Latina em uma única corrente ou foram eles causados por fenômenos históricos distintos?

Walter Mignolo: Seria equivocado limitar a análise dos “movimentos de independência” apenas à América Latina. Pois a “América Latina” não existia no momento em que ocorreu a assim chamada independência. O que houve foi o desmembramento dos vice-reinados espanhóis nas Índias Ocidentais sob o ponto de vista dos espanhóis e da população crioula que buscava a independência da Espanha.

Acho que é hora de deixar para trás o imaginário nacional e ver o que aconteceu como o primeiro abalo da ordem mundial moderna/colonial, quando anglo-crioulos formaram os Estados Unidos na América do Norte, afro-crioulos fundaram a República do Haiti e crioulos hispânicos fundaram diversas repúblicas de Argentina e Chile a Estados Unidos do México.

Como você avalia o caso do Brasil, único dos países latino-americanos a permanecer uma monarquia após a independência?

O Brasil não é necessariamente uma anomalia, mas uma consequência de conflitos imperiais, de diferenças internas entre impérios europeus. No final do século 18, Inglaterra, Alemanha e França assumiram a liderança global, enquanto Portugal e Espanha perderam poder. Portugal transferiu a administração monárquica para o Brasil a fim de escapar dos avanços da França imperial no sul da Europa, antes de colonizar a norte da África.

O Brasil é uma anomalia apenas se os Estados Unidos da América do Norte, o Haiti e as formações republicanas da América espanhola forem tomadas como modelo. Mas não se observarmos a totalidade da formação atlântica desde o século 16, incluindo tanto a formação das colônias quanto os conflitos entre as nações imperiais – Espanha, Portugal, Inglaterra e França.

Alemanha e Itália não são países atlânticos e sua expansão colonial é mínima em relação a eles. Curiosamente, Alemanha e Itália – países sem forte dominação colonial – e Espanha – país imperial que perdeu seu último domínio em 1898 – foram os três países que engendraram Hitler, Mussolini e Franco.

Historicamente, é correto dizer que os movimentos de independência na América Latina foram consequência da Revolução Francesa, da Revolução Gloriosa e da independência dos Estados Unidos?

Pode ser. Mas não acho isso relevante, a menos que ainda estejamos presos na análise moderna, que procura quem influenciou quem, em vez de observar as turbulências do sistema mundial moderno/colonial. Tais revoluções devem ser vistas como parte de um abalo que alterou a formação do mundo atlântico.

A Revolução Inglesa de 1647-1649 e a Revolução Gloriosa nem poderiam ter acontecido sem os alcances extraordinários que a Inglaterra obteve do tráfico negreiro e das plantações no Caribe. Daí se deu a formação de uma burguesia comercial e financeira em Londres, Liverpool e Manchester.

Agora, é preciso fazer uma distinção fundamental entre as revoluções modernas na Europa e asrevoluções modernas/coloniais nas colônias. Antes de uma questão de influência, precisamos entender o campo sistêmico de forças. A diferença básica é que a revolução britânica e a francesa colocaram a burguesia no poder em substituição à monarquia.

Nas Américas, as revoluções não engendraram uma burguesia, mas uma elite colonial que assumiu o controle da economia, da autoridade, do conhecimento, do sexo e da sexualidade, dando continuidade à política imperial com relação aos afro-descendentes e à população indígena.

Enquanto, na Europa, a burguesia subiu ao poder, nas colônias, a elite colonial era basicamente uma elite de proprietários de terras e minas dependente dos efeitos crescentes da Revolução Industrial. Trata-se de uma elite ao serviço da burguesia européia, que fornecia recursos naturais para a Revolução Industrial.

O que definiu o desenvolvimento completamente diferente tomado pelos Estados Unidos após sua independência do destino dos países latino-americanos?

Os EUA, ao contrário dos vice-reinados hispano-americanos e da monarquia brasileira que ocupa quase todo o século 19, eram colônias da Inglaterra, país que estava assumindo a liderança imperial. Nas colônias inglesas que comporão os EUA, surgiu não só uma forte elite comercial mas também política, o que não foi o caso nas colônias inglesas no Caribe insular, por exemplo.

Os EUA se formaram sobre a base da elite política dos dissidentes crioulos, preconizados pelosfounding fathers. Em contrapartida, as demais colônias inglesas eram controladas por plantation owners com interesses estritamente econômicos, e não políticos.

Já as independências nas colônias ibéricas (mais cedo na América hispânica continental e mais tardias no Brasil e na América hispânica caribenha, como em Cuba, Porto Rico e República Dominicana) são independências de países imperiais que, ao final do século 18, haviam perdido a segunda era moderna.

Como se vê, não se trata de influências de causas e efeitos, mas da complexidade dos vínculos histórico-estruturais na formação do sistema-mundo moderno-colonial em seus primeiros 300 anos de existência. Lembre-se que, enquanto isso ocorria na Europa e na América, a Holanda e a Inglaterra começavam já suas incursões na Índia e logo a França o faria no Sudeste Asiático e na África.

Além disso, nas colônias inglesas no chamado Novo Mundo, conquistadores chegaram ao sul e ao Caribe, e peregrinos ao norte. Estes últimos não buscavam conquistas, mas liberdade, eram dissidentes da monarquia inglesa que, até a metade do século 17, não se diferenciava muito da castelhana.

Os peregrinos trouxeram consigo a energia política que os levara a deixar a Inglaterra e os fará construir politicamente o Novo Mundo. Dessa linha provém a formação dos EUA. Na América Ibérica, nada disso aconteceu. Nenhum contingente da coroa castelhana emigrou da península e se refugiou na América.

Até que ponto a América Latina é realmente “latina”? O nome “América Latina” está condenado a desaparecer?

'The Idea of Latin America', de Walter Mignolo
‘The Idea of Latin America’, de Walter Mignolo

Se observar bem, cada vez menos se usa América Latina, dando preferência a América do Sul. Como expliquei em meu livro La idea de América Latina, a latinidade diz respeito apenas à população “branca” de ascendência europeia. Não vejo por que a população de ascendência africana teria que aceitar sua latinidade, em vez de sua africanidade. Da mesma forma, poderíamos falar em América Africana em vez de Latina. E de América Indígena, em vez de Africana ou Latina.

A latinidade foi um projeto imperial francês, quando o país, a partir do século 19, tentou recuperar a liderança dos países latinos do sul da Europa (Itália, Portugal, Espanha), a fim de enfrentar a liga anglo-saxônica da Inglaterra e da Alemanha. Esta divisão da Europa entre a Europa do Norte e do Sul, a anglo-saxônica e a latina, a protestante e a católica, se reproduz nas Américas: a América de Jefferson e a de Bolívar.

Pois esta história está chegando ao fim, o termo América Latina “incomoda” muita gente. Não só aqueles cujas memórias não são greco-romanas, e sim africanas ou indígenas, mas também os de ascendência europeia que consideram um atropelo impor a “latinidade” como um marco subcontinental. Tudo está mudando hoje, principalmente no Caribe insular (francês, inglês, holandês e espanhol) e continental. Aí a latinidade se reduz a um mínimo sustentável.

Além disso, é preciso perguntar quão “anglos” são os EUA, com 45 milhões de “latinos”. Enquanto, na América do Sul e no Caribe, a latinidade se confunde com um termo hegemônico, nos EUA ela se converte em um desafio para a hegemonia da “anglicidade”.

E por que os Estados Unidos reivindicam para si o nome América?

Durante o século 16 e todo o 17, a demografia das Américas era composta de habitantes nativos, europeus principalmente ibéricos e africanos escravizados. Durante quase todo o século 16, não se encontrava um inglês nem por casualidade. Walter Raleigh fundou uma colônia em Ronaoke em 1584, onde hoje é a Carolina do Norte. Os peregrinos chegaram à costa do que seria a Nova Inglaterra no começo do século 17.

Eles escaparam do absolutismo da coroa inglesa e, se não eram revolucionários, atuavam em dissensão. Isso não houve nem na Espanha nem em Portugal. Na Inglaterra, a situação política no século 17 foi acompanhada pelo crescimento econômico das plantações, principalmente no Caribe. Foi aí que a linha da teoria política de Maquiavel a Locke se afirmou na propriedade privada como critério fundamental do indivíduo soberano.

É isso que legitima Locke com relação à Revolução Gloriosa: seu tratado de governo reafirma os direitos da nascente burguesia, da soberania individual em relação à propriedade privada. Nada disso existiu na Península Ibérica, nem nas colônias luso-hispânicas.

Quem explicou o que quero dizer com clareza e erudição foi o venezuelano Enzo del Bufalo, num livro intitulado Americanismos y democracia (2002). Sua tese é de que o sujeito moderno, que já anunciava Cervantes na literatura e Descartes na filosofia, se concretizou politicamente na revolução colonial que gerou os Estados Unidos. Del Bufalo acerta ao distinguir entre americanismo e EUA. O americanismo é um projeto político que levou à formação do sujeito moderno e soberano, fundamentado na propriedade privada e que surge precisamente na América.

Esse projeto culminou com a formação do primeiro Estado moderno, os Estados Unidos da América do Norte (antes mesmo da Revolução Francesa). A historiografia europeia contou a história relegando a revolução americana a segundo plano. O sonho americano não são os Estados Unidos, mas o americanismo que os precede e funda. E esse mesmo Estado pode trair o sonho americano, como aconteceu no governo do segundo Bush. Uma das tarefas de Obama é precisamente restaurar esse americanismo.

Como disse Del Bufalo: “Os Estados Unidos da América são como a prática da América, que não é exatamente igual à América como projeto. Por sua vez, a América como utopia pode ser assumida por outros Estados sem nunca realmente se converter em uma prática, como ocorreu com os Estados latino-americanos”.

O fim da Guerra Fria altera o significado e a predominância ideológica e econômica dos Estados Unidos na América Latina (e no mundo)?

Sim, muda muitas coisas, que eu resumiria em dois aspectos. Em primeiro lugar, a euforia e o senso de vitória da Europa Ocidental e dos EUA criaram as condições para os dois pilares da administração Bush: a invasão do Iraque e o colapso de Wall Street. Ou seja, o colapso do controle da autoridade e da economia pelos EUA.

Em consequência disso e do crescimento principalmente da China, mas também de outros países produtores de petróleo (Irã, Venezuela, Rússia), entramos em uma ordem policêntrica interconectada por um tipo de economia, a capitalista.

Quatro trajetórias dominarão o futuro global:

A primeira delas é o fim do ciclo de 500 anos de hegemonia e dominação ocidental, com a qual a administração Bush conseguiu acabar. A segunda é a deswesternização, que está sendo articulada no Leste e no Sudeste Asiático e consiste em aceitar a economia capitalista, mas disputar o controle da autoridade, do conhecimento, dos direitos humanos, das relações internacionais etc.

A terceira é a reorientação da esquerda, que tem várias caras: a esquerda europeia clássica, a esquerda europeia dos países do Sul, ligada ao Fórum Social Mundial, e a esquerda colonial, como é o caso da Bolívia, por exemplo.

E, por último, vem o descolonialismo, que começou durante a Guerra Fria com os movimentos de libertação nas colônias inglesas e francesas na África e na Ásia, mas que tem hoje outra cara, tanto epistêmica quanto política, na América do Sul e no Caribe.

Evo Morales é a primeira concretização desta tendência, enquanto os zapatistas foram o primeiro movimento social a aplicar o descolonialismo. Por mais que não tenham usado o termo, seus dizeres e ações eram descoloniais. Estas quatro tendências serão analisadas mais detalhadamente no meu próximo livro, The darker side of Western Modernity.

Como o senhor avalia o surgimento de uma nova esquerda pós-Guerra Fria no continente? Trata-se de uma ruptura ou é possível observá-la como um desenvolvimento político contínuo desde as independências?

Depois do fim da Guerra Fria, e talvez até o ano 2000, a esquerda boliviana foi, sem dúvida, a que mais contribuiu para a reorientação da esquerda moderno-colonial (que os europeus chamam apenas de esquerda moderna) e que se abriu para a compreensão histórica e as demandas indígenas propostas pelos escritos de José Carlos Mariátegui no Peru. Ela é, ao mesmo tempo, continuidade e câmbio com a esquerda nacionalista.

No entanto, a diferença colonial com projetos indígenas e afros persiste. A esquerda é um projeto “branco”, para quem o fenômeno de classe é fundamental, enquanto que projetos indígenas e afros partem da raça como categoria fundamental.

Além disso, existe a questão do patriarcado, mais fácil de relacionar com a questão racial do que com a esquerda que mantém o fenômeno das classes como fundamento. Creio que, no futuro, os movimentos feministas, junto com projetos indígenas e afros, ganharão terreno sobre a primazia do marxismo e a Teologia da Libertação, as duas opções dissidentes que indígenas, afros e mulheres possuíam antes de iniciar seus próprios projetos.

Pode-se dizer que a estrutura colonial mantida desde a vigência do Colonialismo provoca a violação dos direitos humanos, a concentração de renda e a marginalização política de grupos inteiros da sociedade. Será possível superar essa ordem política e social sem uma nova revolução material?

Não se muda o mundo, mas sim as pessoas que fazem, controlam e desfazem o mundo. Uma “revolução” material sem a descolonização do conhecimento e da subjetividade só leva a mudanças de conteúdo, mas não dos termos na organização do mundo. Para isso, falta uma perspectiva que não seja nem o capitalismo nem o marxismo, mas descolonial. Ou seja, que as instituições (governo, economia, educação, saúde, alimentação) sejam postas a serviço da vida e não a vida a serviço das instituições.

Hoje a instituição que se procura salvar é o capitalismo. Nos dizem numa mesma notícia, com frequência, que a economia cresce, mas o desemprego também. A conexão que os jornais não fazem é que o que importa é a instituição, não a vida.

O projeto descolonial do qual faço parte inverte este processo: só a descolonização do ser e do saber levará a um câmbio do horizonte econômico e político. Precisamos concretizar o “sonho descolonial”, segundo o qual as instituições estão a serviço da vida, em vez de por as pessoas a serviço das instituições. Esta fórmula é a base da retórica moderna e da lógica do colonialismo (duas caras da mesma moeda), da qual precisamos nos desprender a fim de permitir mudanças radicais.

Revoluções materiais guiadas pela esquerda não nos levam muito longe, pois mantêm os termos do discurso, mudando apenas os conteúdos, com resultados desastrosos até então.

Entrevista: Rodrigo Abdelmalack

Revisão: Roselaine Wandscheer

 Fonte:  DW

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