A descrença nas instituições e o desejo de justiça individual

João Dias Turchi, advogado e dramaturgo paulistano, escreveu artigo para o Favela 247 sobre a violência policial sofrida ontem (14) por ele e por um cidadão boliviano. O boliviano foi acusado, sem provas, de ter tentado furtar a carteira de um rapaz dentro de um coletivo. A carteira estava no chão. Bastou uma indicação do cobrador para a vítima ser imobilizada pelos passageiros até a chegada da polícia, que o agrediu com vários tapas no rosto. Quando Turchi se apresentou como advogado foi acusado de cúmplice pelos policiais: “[Ele] Começa a me perguntar todo tipo de questão, desde qual minha profissão, onde eu moro, com quem, se sou desses advogados de direitos humanos e diz que o pais está assim por gente como eu.” Turchi parte desse episódio para discutir a descrença generalizada nas instituições, os linchamentos  e a violência institucionalizada da polícia

Por *João Dias Turchi, para o Favela 247

E se não fosse comigo (e se fosse)

Foi ontem e deu tempo de pensar um pouco em tudo o que aconteceu. Deu tempo até daquele conformismo chegar, aquela sensação de “por quê fui me meter nessa?”. Mas em casa fiquei pensando em tudo o que poderia ter feito e dito e nas coisas que eu não poderia fazer sozinho, nunca. Sobre isso não dá pra se conformar. Repito abaixo o relato do facebook, essa ferramenta de indignação tantas vezes inócua, mas quase sempre a primeira que temos à mão:

“Na esquina da paulista com a consolação, 19:00, entro num ônibus parado por uma suspeita de roubo, o suspeito, um imigrante boliviano, é retirado a força por dois PMs. Fora do ônibus, após a primeira pergunta sem resposta, o boliviano começa a levar tapas fortes na cara, reiteradamente. Eu digo apenas “Não precisa agredi-lo, ele não está se opondo a nada”. O PM me olha, pergunta quem eu sou, digo que sou advogado, ele pergunta se sou cúmplice, digo que não estava no ônibus, que estou apenas dizendo que a agressão não é necessária, ele me manda colocar as mãos para trás e começa a passar um radio, numa seqüência de fatos que envolvem uma ameaça de me algemar, levanta minha ficha na polícia, vasculha todas as minhas coisas, me faz ficar de costas pra ele, com as mãos para trás e a barriga no ferro do ponto de ônibus. e começa a questionar porque eu roubei. Ele sabia que eu não era um cúmplice, foi a forma de justificar minha detenção. Começa a me perguntar todo tipo de questão, desde qual minha profissão, onde eu moro, com quem, se sou desses advogados de direitos humanos e diz que o pais está assim por gente como eu. Eu digo que pode me levar e que vou chamar a imprensa. Ele solta mais ofensas, diz que vou perder a OAB, que vou ser detido porque não vou conseguir provar que não tenho ligação com o roubo. 

Eu fiquei com medo. Eu estudei direito, sou branco, de classe media, moro no centro. E eu tive medo. Eu sabia que tudo aquilo que ele fazia estava errado, que ele estava abusando do poder, mas ele me mandava calar a boca e eu tinha medo de falar. Eu não sabia o que dizer porque tudo o que eu dizia, a lei, o direito, nada tinha força contra aquela violência, corroborada por muitos que ali estavam no ponto de ônibus. Talvez alguns acharam mesmo que eu tinha sido o assaltante e se decidissem fazer um linchamento, ali e agora? Como eu ia me defender e defender o outro cara?

Quando ele me liberou sob argumento de que minha ficha é limpa e disse pra não me meter mais nessas coisas eu fui embora. Eu devia ter ido pra delegacia, mas eu tive medo de chegar lá e encontrar mais gente como ele e toda a agressão que sofri terminaria com um “não mexe nisso que a gente também não vai mexer”.

Mas alguma coisa precisa ser feita, pra que a gente não sinta mais medo, e pra que a violência sistemática e institucionalizada no centro, na periferia e em qualquer lugar acabe.

O nome dele era PM Jesus.”

Agora distanciado, eu consigo pensar no absurdo da situação de um ponto de vista no qual eu não sou o protagonista. No ônibus, diversas pessoas seguravam o suposto assaltante, aguardando que a polícia chegasse. A única prova da sua relação com o suposto crime foi uma indicação do cobrador “Esse boliviano que levou” quando um dos passageiros gritou “cadê minha carteira”. Isso tudo eu ouvi depois, enquanto aguardava a averiguação da minha ficha na polícia, ao lado do suspeito e do supostamente assaltado.

A carteira estava no chão, do lado do passageiro. “Mas ele com certeza jogou ela lá”. Mas ela estava no chão, não houve crime, no máximo uma tentativa e nem para isso havia provas. A carteira poderia ter caído. Alguém que não o boliviano poderia ter tentado pegá-la. Não houve dano, a carteira estava com o dono, o boliviano não carregava nenhum item suspeito, eu não carregava nenhum item suspeito. Ninguém desacatou ninguém. Todos aguardavam em silêncio que a hierarquia da violência se cumprisse, que fôssemos suficientemente intimidados a ponto de nunca mais fazer aquilo: supostamente assaltar, supostamente defender um suposto bandido, supostamente ter sua carteira levada. Como alguém que estudou direito e atualmente é mestrando em cênicas, havia muito mais teatralidade naquilo do que uma situação de dano jurídico.

Ando pensando (e como não) nos linchamentos. Nesse desejo de justiça, nessa necessidade física de apontar os culpados e, se não encontrá-los, inventar algum. Uma cara pros problemas e pras inseguranças. E aquela frase “se fosse comigo”, essa frase piegas que retira a questão estrutural e institucional por trás disso tudo, inevitavelmente me bate. Foi comigo dessa vez, de um jeito muito mais leve do que o que acontece com tanta gente todos os dias. Na periferia, esse lugar tão distante mas tão perto, imagino e pesquisas apontam que isso acontece todos os dias. Existe uma sensação, reiterada por Shererazades, Datenas, jornais, revistas, televisões, de que o crime está aí impune o tempo inteiro e que a gente precisa segurar os suspeitos com as próprias mãos. Exigir justiça. Vestir a bandeira do Brasil e sair às ruas pedindo o fim dos partidos.

A descrença generalizada nas instituições aumenta esse desejo da justiça individual. Em tempos assim, a violência torna-se justificada, a polícia, sem um governo que a oriente e coíba abusos, que se posicione contrariamente a eles publicamente, que desmilitarize suas forças, ganha status de instituição autônoma, acima de qualquer outra autoridade e por isso suas ações tornam-se plausíveis sob o argumento de controle da ordem e da averiguação dos fatos. A atuação torna-se moral, é moralmente tolerável que um imigrante boliviano seja levado para a DP sem prova alguma, é também aceitável que um cidadão que se posiciona contra uma violência física cometida por um policial seja detido. Essa escalada da violência não vai acabar com o afastamento desse PM, não vai diminuir com denúncias pontuais. É preciso uma postura governamental extensiva contrária a ações assim, muito diferente das posições do atual Governo de São Paulo, que acaba de anunciar que irá premiar cidadãos que denunciarem “bandidos”.

Quando chega perto assusta, mas deveria assustar sempre, se eu fosse negro, se eu fosse pobre, se eu fosse mulher, se eu fosse boliviano, se eu fosse da periferia, se eu fosse dos direitos humanos, se eu fosse ativista, se eu fosse PM, se eu fosse alemão, se eu tivesse vindo pela Copa, se eu odiasse a Copa, se a carteira estivesse com o boliviano, e se estivesse comigo e se eu estivesse ali apenas esperando meu ônibus e fosse confundido com um crime que ainda não foi provado. Se eu não estivesse ali e se não fosse comigo. Não dá pra naturalizar e lamentar a violência institucionalizada. Não dá pra aceitar que ainda existam métodos de tortura para arrancar confissões de crimes. Não dá pra aceitar que a polícia continue militarizada.

E não dá pra aceitar que não se saiba o que aconteceu com Amarildo, com DG, com o boliviano e com tanta gente que não vira notícia.

*João Dias Turchi é formado em direito pela USP, escritor e mestrando em Dramaturgia na Eca-USP. Atualmente trabalha no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP).

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