Detenção de Mano Brown exemplifica a mensagem de Cores e Valores

Pedro Paulo Soares Pereira, 44 anos, também conhecido como Mano Brown, um dos maiores músicos do gênero hip-hop no Brasil, foi detido na tarde desta segunda-feira, 6, na bairro de Campo Limpo, localizado na Zona Sul de São Paulo, após frear bruscamente ao se deparar com uma blitz montada pela Polícia Militar na Avenida Carlos Caldeira Filho.

Por Luciana Rabassallo, no Vermelho 

O carro que ele dirigia estava com problemas no licenciamento e o exame médico da carteira de habilitação do músico estava vencido. No desenrolar da abordagem policial, ele foi algemado e levado ao 37º Distrito Policial, também no bairro de Campo Limpo. A polícia afirma que o cantor não permitiu uma revista pessoal, por isso foi necessário domina-lo. Após assinar um termo circunstanciado por desobediência civil, o rapper deixou a delegacia e, até o momento, não falou sobre o ocorrido.

Em entrevista ao programa Brasil Urgente, da Rede Bandeirantes, apresentando por José Luiz Datena, um representante da divisão de Comunicação Social da PM de São Paulo, identificado como Macera, afirmou que “a corporação teve problemas anteriores com Mano Brown, infelizmente”. “Sem entrar na questão pessoal, mas, em outras ocasiões, ele já chegou a questionar abordagens policiais dizendo que isso se tratava de racismo e que era discriminação. Então, ele tem um histórico de dificultar as ações policiais, que são trabalhos normais. E, nesse caso, acabou levando isso ao extremo e gerou toda essa polêmica”, afirmou o agente.

Mano Brown estava infringindo a lei ao conduzir um veículo com os documentos atrasados? Sim. Ele estava! Mano Brown agiu equivocadamente ao frear bruscamente quando viu o bloqueio policial? Sem dúvida alguma. Ele sabe muito bem o que isso pode representar. Mano Brown está errado quando denuncia, através das músicas dos Racionais MC’s ou em discursos durante os shows, a violência e o racismo que a população das periferias brasileiras enfrenta diariamente? Não! A liberdade de expressão é um direto constitucional. A posição político-social dele pode ser apontada como motivo para uma detenção? De forma alguma.

Segundo o Código de Trânsito Brasileiro, dirigir com a Carteira Nacional de Habilitação vencida há mais de trinta dias é uma infração gravíssima, punível com multa e retenção do veículo até a apresentação de condutor habilitado. A medida administrativa, no caso de licenciamento vencido, é a mesma. Multa e apreensão do veículo. O desacato, por sua vez, é configurado pela PM em casos em que a corporação julga ter ocorrido ofensa ou menosprezo ao funcionário público durante o trabalho. O individuo deve ser conduzido à delegacia mais próxima para dar explicações ao delegado de plantão.

O infeliz episódio, contudo, é a cereja do bolo para exemplificar o que Brown, KL Jay, Ice Blue e Edi Rock afirmam em Cores & Valores, registro que chegou aos ouvidos dos fãs em novembro de 2014, sucedendo Nada Como um Dia Após o Outro Dia (2002). O disco, publicamente questionado pelos apreciadores do rap nacional – tanto pela sonoridade quanto pelas mensagens -, é um tratado sobre o racismo mascarado que existe no Brasil.

Não vou entrar no mérito de casos como o do Senador da República Aécio Neves, pego em uma blitz também com a habilitação vencida, que se recusou a fazer “teste do bafômetro”, e liberado em seguida, e de Thor Batista, filho do empresário Eike, que em 2012, alcoolizado, atropelou e matou um ciclista em uma rodovia do Rio de Janeiro e, posteriormente, foi inocentado. À época do acidente, ele possuía 11 infrações de trânsito, sendo que nove eram por excesso de velocidade e, por isso, estava com a licença para dirigir suspensa. Todos devem ser punidos com o rigor da lei. Mas, de fato, há dois pesos e duas medidas para a justiça no Brasil.

Agora, parafraseando Caetano Veloso, se você ainda não entendeu a mensagem: “Você é burro, cara. Que loucura!”. Cores & Valores demonstra o amadurecimento dos Racionais MC’s e, consequentemente de Mano Brown, ao denunciar o racismo e explicar a violência que o preconceito gera. Mais do que contar como é o cotidiano da periferia (Da Ponte Pra Cá) e relatar o massacre da Casa de Detenção de São Paulo em 1992 (Diário de Um Detento), o álbum questiona os valores (poder aquisitivo) e as cores (da pele) que segregam a nossa sociedade.

“Entrar na loja, ver uma nave zero e dizer / “Eu quero, eu compro e sem desconto!” / À vista, mesmo podendo pagar / Tenha certeza de que vão desconfiar / Pois o racismo é disfarçado há muito séculos / Não aceita o seu status e sua cor”, diz a letra de Eu Compro, uma das canções mais questionadas de Cores & Valores. Mas fica a reflexão: estariam os Racionais MC’s tão fora da curva no momento de representar as minorias? Eu acho que não.

Voltando ao “problema” com a polícia. A Praça, também presente em Cores & Valores, é um relato sobre a confusão que aconteceu durante um show dos Racionais na Virada Cultura em 2007. A “batalha”, um confronto entre a PM e o público, foi a responsável por tirar os artistas de rap da programação do evento, que acontece anualmente na cidade de São Paulo, por seis (intermináveis) anos. A situação só foi revertida em 2013, quando os Racionais voltaram a se apresentar na Virada Cultural, com um show que reuniu cerca de 100 mil pessoas e foi marcado pela paz.

Na introdução da canção a voz da repórter Glória Maria, em matéria exibida pelo programaFantástico, naquele domingo fatídico de 2007, questiona “Até que ponto o uso de bala de borracha e gás lacrimogênio não acaba aumentando a confusão?”. Em seguida, as rimas acusam: “Chamaram a Força Tática, Choque e a Cavalaria / Polícia despreparada, violência em demasia! / Mississípi em chamas, sou fogo na Babilônia”. A rixa entre os membros do grupo Racionais MC’s e a Polícia Militar vai além de uma detenção e um boletim de ocorrência por desobediência. A confusão é um exemplo da dicotomia social que coloca em confronto direto os profissionais que são pagos para defender a população e as classes sociais menos favorecidas.

Vale lembrar que Mano Brown já foi detido em outras duas ocasiões. Na primeira, em julho de 2004, também por desacato à autoridade ao ser flagrado com um cigarro de maconha no bolso. Foi liberado no dia seguinte após pagar fiança de R$ 60. Em 2009, depois de uma confusão entre as torcidas do Santos e do Corinthians, no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, ele foi detido como suspeito de participar do conflito. Mano Brown foi inocentado após imagens mostrarem que ele não estava na briga. Na segunda vez, ele tinha o “perfil” de quem estaria ali arrumando confusão. Mas, vem cá, qual seria esse “perfil”? Acho que não é preciso responder.

Mais sobre Cores & Valores

Doze anos após Nada Como um Dia Após o Outro Dia chegar às lojas, os Racionais MC’s lançaram, no mês de novembro, o oitavo álbum de estúdio da carreira deles. Cores & Valores é composto por 15 faixas e tem aproximadamente 35 minutos de duração.

O trabalho, que marca os 25 anos de estrada do grupo mais emblemático do rap nacional, formado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, é, na verdade, um grande desafio para os músicos. Nos últimos anos, alguns membros dos Racionais têm sido criticados por participações solo em programas populares de televisão e, também, por um posicionamento menos radical em relação à mídia. Além disso, algumas apresentações do coletivo em boates frequentadas por jovens da elite paulistana foram repudiadas por fãs conservadores do movimento hip-hop.

Nos 12 anos que separam Nada Como um Dia Após o Outro Dia de Cores & Valores, grandes mudanças ocorreram no país. Na música, a nova geração do rap, encabeçada por nomes como Criolo e Emicida, saiu das batalhas da Santa Cruz e da Rinha dos MC’s rumo ao mainstream. O hip-hop deixou de ser, exclusivamente, a música de protesto produzida na periferia e passou a falar (também) sobre relacionamentos amorosos, amizade e festas. Na área econômica, o crescimento do Brasil deu aos menos favorecidos um poder de compra maior e facilitou o acesso à cultura.

Na sonoridade das batidas, o disco acompanha a tendência mundial da trap e da bass music – usando e abusando dos graves, viradas e efeitos. O termo trap, que surgiu em Atlanta, nos Estados Unidos, em meados dos anos 2000, vem do trap rap, um derivado do dirty south, estilo de hip-hop que domina todo o sul norte-americano com nomes como GucciMane, T.I. e Waka Flocka. Nas letras, a renovação da sonoridade fica ainda mais clara.

Apesar de ter faixas como A Escolha Que Eu Fiz, que fala sobre a prisão de um assaltante, e Eu Te Disse, que retrata a periferia, o disco abandona o discurso extremamente político e dá espaço para canções como Eu Te Proponho, uma balada romântica, e A Praça, um relato sobre a confusão que aconteceu durante um show dos Racionais na Virada Cultural em 2007.

A introdução do pandeiro em Quanto Vale o Show? é uma deixa da pegada mais “pop” do disco. Com produção de Mano Brown e de DJ Cia, do RZO, Brown rima sobre a adolescência difícil nas ruas do bairro do Capão Redondo, em São Paulo, e também sobre o começo da carreira do grupo, enquanto a batida conta com um riff de guitarra rasgado e com o sample de Gonna Fly Now, do músico Bill Conti, tema de Rocky – Um Lutador.

Outro destaque é Cores & Valores – Finado Neguin. Na canção, Mano Brown relembra o grande amigo dele, Emerson Neguin, que morreu em 2002, vítima de um acidente de moto. O “brother” de Brown foi o responsável por escolher as cores laranja e preto para representar a Vila Fundão, região do Capão Redondo em que o rapper nasceu, cresceu e vive até hoje. O “uniforme” coloriu os shows dos Racionais durante a turnê de 25 anos e também está na foto que ilustra o encarte de Cores & Valores.

Ouça faixas do disco Cores e Valores: 

A Praça

Eu compro

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