Dilma e os anteparos do poder

Não é que as mulheres ocupem lentamente os altos cargos da República. Lenta mesma é a política masculinista que ainda hoje cria obstáculos ao surgimento de outras tantas Dilmas, Michelles e Cristinas, garante cientista social

Ela ganhou. E em 1º de janeiro de 2011 vai protagonizar um momento histórico. Aos 62 anos, Dilma Vana Rousseff deverá tomar posse como a primeira presidente eleita do País, a bordo de 56 milhões de votos.
O feito foi celebrado pela ex-presidente chilena Michelle Bachelet, hoje à frente da ONU-Mulheres, como “uma mudança cultural que acaba de começar”. Por mais seca que possa aparecer, a chanceler alemã Angela Merkel mandou congratulações “do fundo do coração”. Cristina Kirchner, em luto pela perda do marido-parceiro no poder, não se furtou a saudar a colega brasileira: “Bem-vinda ao clube das companheiras de gênero”. Hugo Chávez, mais econômico e direto, fez seu assédio político cortando a frase de Cristina ao meio. “Bem-vinda ao clube”, resumiu o venezuelano.
Em seu discurso de vitória, Dilma prometeu “honrar as mulheres” e pediu que “pais e mães de meninas olhassem hoje nos olhos delas, e lhes dissessem: sim, a mulher pode!” Para a cientista política cubano-americana Sonia Alvarez, autora de Engendrando Democracia no Brasil: Movimento Feminista e Transição Política (Princeton University), não há dúvida de que “Dilma pode”. Mas não se espere que, pelo fato de ser mulher, governará de forma diferente. “Ela o fará de acordo com a sua vontade política”, calcula. Nesta entrevista, Sonia despe os estereótipos do mundo da política, inclusive os mais regressivos, como “Dilma, a mãe do PAC”, “Lula, o filho do Brasil” e “Getúlio, o pai do povo”.

Há quem diga que a participação da mulher na política latino-americana tem sido lenta e retardatária. No entanto, nesta década, tivemos presidentes mulheres na Argentina, Chile, Costa Rica, e agora no Brasil. A situação está finalmente se revertendo?
Primeiro, é preciso frisar que a participação das mulheres na política formal pode ser limitada. Em outros espaços, como nos movimentos sociais, nas organizações comunitárias e nos processos mais significativos de transformação política – como o combate às ditaduras, a defesa dos direitos humanos e as transições democráticas -, a presença delas tem tido muito impacto, mesmo que indireto, sobre a política institucional. Segundo, o problema não é falta de interesse, vocação ou experiência das mulheres. Ele é estrutural, histórico, e envolve a política formal que, no mundo inteiro, continua dominada por homens das classes altas e pertencentes aos grupos ra ciais dominantes. O que é “lenta e retardatária”, então, é a política masculinista e elitista latino-americana, bem como da maioria dos países. Não as mulheres! A solução para a sub-representação das mulheres, especialmente as pobres, negras e indígenas, tem que passar pela reestruturação da política. As cotas eleitorais, mal-sucedidas, por mal implementadas no Brasil, seriam uma medida na direção dessa reforma necessária.

Dá para avaliar o peso simbólico de uma mulher presidente?
O simbolismo da eleição de Dilma serve, antes de mais nada, como exemplo para as cidadãs brasileiras. Uma coisa que Dilma falou em seu discurso é bem verdade: a importância de sua eleição reside na tentativa de desnaturalizar a ausência de mulheres no poder, para que sua eleição deixe de ser uma exceção. Mas, em vez de nos preocuparmos só com as presidentes, é importante pensar nas mulheres que conseguiram se eleger vereadoras, deputadas, senadoras, ou mulheres que estejam na liderança de partidos políticos e sindicatos. É preciso construir uma Nação desde a base, onde tanto mulheres, quanto homens sejam capazes de governar. O fato de só termos 17 mulheres líderes mundiais já diz muito. A agenda não deveria ser como eleger mais mulheres presidentes, mas como mudar a política para que isso não seja mais um feito excepcional. Agora, não há razão p ela qual devemos esperar de uma mulher algo em particular na política, ou seja, que sejam mais ligadas às questões sociais. Não é pelo fato da Dilma ser mulher que o Brasil vai ter políticas mais progressistas em relação às mulheres. Isso dependerá da vontade política dela e das relações que mantiver com os movimentos sociais, especialmente, o movimento de mulheres.

Pela primeira vez no Brasil, a campanha presidencial contou com duas mulheres entre os principais candidatos, ou seja, além de Dilma, Marina Silva, do PV. 
Marina teve papel expressivo nessa campanha. Provocou um impacto cultural e simbólico interessante no sentido de tentar mudar a cultura política do Brasil, quebrando estereótipos. E se declarou mulher negra, vinda de uma trajetória de vida muito simples. Nesse sentido, ela e Dilma são bem diferentes.

Michelle Bachelet foi uma indicação do ex-presidente chileno Ricardo Lagos, Cristina Kirchner foi apontada pelo marido Néstor, e Dilma Rousseff, a escolhida de Lula. A senhora concorda que, aos poucos, mulheres alcançam o topo do poder, mas ainda são alavancadas ao primeiro escalão por figuras masculinas de forte apelo popular?
Existe um padrão histórico comum, em que as mulheres chegam ao poder a partir de uma relação de parentesco com o “homem político”. São esposas, filhas… Elas são “pescadas”, por assim dizer. A façanha de Weslian Roriz (esposa de Joaquim Roriz, que desistiu da reeleição ao governo do Distrito Federal) só pode ser imaginada, e muito menos permitida, politicamente, porque o senso comum ainda aceita a ideia de que a esposa seja naturalmente submissa ao seu “dono”. Agora, o caso de Dilma é totalmente diferente. É mais parecido com o de Bachelet. Ou seja, não há uma ligação por casamento, ou uma relação consanguínea, com estes homens, mas existe o apadrinhamento político. Não quero tirar o mérito nem de Dilma, nem de Bachelet, que apesar de apresentadas como “amiga do homem”, tinham uma carreira política própria, essencialmente administrativa. Mas é fato que a relação com o masculino político de grande influência facilitou-lhes a chegada ao poder. Acredito que o fato de Bachelet, apesar de ter 80% de aprovação no final de seu governo, não ter conseguido fazer o sucessor, tem a ver com o ainda forte viés machista na política eleitoral. O ponto mais importante é dizer que, se Lula conseguiu ajudar Dilma ser eleita, isso significa que, certamente, um esforço institucional partidário, igualmente intenso e convicto – como no financiamento de suas campanhas – poderia levar muitas Dilmas, Michelles e Cristinas ao poder.

Recentemente viúva, Cristina Kirchner terá de provar que consegue governar sem o marido, tido como presidente ‘de fato’. Será um duro teste para ela?
O fato de Néstor ter sido visto como um presidente “de fato” já revela um sério problema. Reproduz estereótipos sobre uma suposta incompetência feminina para com as coisas políticas, e ainda reforça a nossa dependência. Os Kirchner sempre pregaram que eram parceiros, na vida e na política. Mas não há dúvida de que Néstor Kirchner continuou sendo o grande articulador político por trás da presidente. Resta agora saber se Lula estabelecerá outro tipo de papel no governo de Dilma.
Fala-se do feito inédito de Dilma, assim como se falou de Obama por ser o primeiro negro a presidir os EUA. Esses ‘pioneirismos’ tendem a se eclipsar ao longo do mandato? 
Não acho que houve eclipse algum da identidade racial de Obama. Ele nunca deixou de ser o “Presidente Negro”, muito pelo contrário. As forças conservadoras nos EUA não deixam de remarcar a sua raça e continuamente a ressignificam, para o pior e de forma nem sempre sutil, para deslegitimá-lo. Mas os movimentos que o apoiaram como alternativa ao elitismo do homem branco, que ainda domina a política estadunidense, também não esqueceram de cobrar dele suas promessas de justiça social, racial, de gênero. Nesse sentido, tenho certeza de que as mulheres brasileiras, os pobres, os negros e indígenas, os/as LGBT, e todos os historicamente excluídos também não vão se esquecer de quem Dilma é, nem de onde veio. Vão lembrar quem e o quê a presidente disse qu e veio representar.
Pesquisas de intenção de voto mostraram que Dilma tinha maior índice de rejeição entre as mulheres. O que isso sugere? 
É difícil saber o que esse dado nos diz. Penso que Dilma não teve muita rejeição por ser mulher. A resistência a ela deve ter espelhado uma rejeição ao partido. Mas é claro que o sexismo e a homofobia são nossos principais inimigos, e se expressam também nas urnas. Por isso muitas mulheres não acreditam que mulheres sejam capazes de governar. Mas o Brasil mostrou nessas eleições ter superado esse obstáculo.
Mulheres no poder são associadas à imagens de ‘mãe da Nação’ ou ‘dama de ferro’. Dilma, por exemplo, foi apresentada como ‘mãe do PAC’. 
É comum que mulheres sejam representadas como a “grande mãe”. É interessante que Dilma seja a “mãe do PAC”, e Lula, “o filho do Brasil”, enquanto Getúlio Vargas, era o “pai do povo”. São estereótipos da política. Há uma tendência de ver o papel político das mulheres como extensão de suas funções no lar. E que elas levariam para a política características femininas que exercem em casa, como o carinho pelos filhos, a administração de despesas, etc. Assume-se que elas seriam mais gentis na política, mais honestas, cuidadosas e preocupadas com o bem-estar social. Mas acho que se explorou a “imagem maternal” de Dilma como forma de contestar sua fama de durona. Para enfrentar o sexismo intrínseco na política, muitas precisam mesmo fazer cara de duronas, mas pode ser mera performance. E, convenhamos, força não é monopólio masculino. Ao contrário, força e garra é o que todas as mulheres, especialmente negras, pobres, marginalizadas, precisam ter todos os dias para enfrentar a vida.

Dilma, além de mãe, é duas vezes divorciada. Ou seja, contesta o modelo tradicional da família cristã. Pode ser um complicador para ela? 
A moral cristã, conservadora, patriarcal, esteve muito presente nessa eleição, de forma preocupante para o futuro da democracia. O Estado laico é fundamental para o exercício da cidadania democrática. E o avanço da agenda moral de valores cristãos na política, por parte de evangélicos, mas também por parte de católicos – vide o Papa Bento XVI e suas instruções aos bispos brasileiros sobre como orientar o voto dos fiéis – parece até reprise das “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” que a direita organizou contra o presidente João Goulart em 1964, e que serviram de modelo para a manipulação dos papéis de gênero por todos os governos militares da região, nos anos 70 e 80. Nessa campanha, o debate sobre aborto foi preponderante no segundo turno e o confronto moral to rnou-se central. A maneira como usaram argumentos religiosos para tentar deslegitimar Dilma não foi bom sinal para o futuro da política brasileira. Ficou evidente que os partidos precisam trabalhar seriamente essas questões ditas “morais”, e se engajarem num trabalho político sobre esses assuntos, evitando as manipulações.

Aproveitando a nossa conversa, que rumos tomará o feminismo neste século 21? 
Não existe uma consciência única ou mesmo uma palavra-chave que aponte a demanda mais significativa dos movimentos feministas hoje. O que existe são mulheres lutando por seus direitos – muitas nem se dizem feministas – nos mais diversos espaços da sociedade. Ainda encontramos as plataformas históricas, mas a luta das mulheres não se restringe ao lobby do aborto ou do combate à violência doméstica. E isso muitas vezes não se entende. Sempre nos preocupamos com uma visão de mundo ampla, que diz respeito aos homens também. Um mundo mais humano, mais igualitário, menos racista, com mais justiça social e mais respeito aos direitos humanos.


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