Discussões sobre a dissidência sexual nos contextos africanos

Paula Thaise Rodrigues, licenciada em História, analisa a situação de populações LGBTQI+ em países africanos e discute o quanto a homofobia pode ser prática de Estado

FONTEUFRGS, por Paula Thaise Rodrigues
Foto: Marc Bruxelle/Getty Images

Em maio deste ano, apresentei meu Trabalho de Conclusão de Curso de Licenciatura em História, intitulado Discussões sobre a dissidência sexual no continente africano: da “inexistência” e criminalização ao silêncio em Moçambique, orientado pelo professor José Rivair Macedo, no qual discuto sobre a homossexualidade no continente africano e as diversas narrativas que foram formadas em torno do tema. 

A primeira declaração que apresento diz respeito à exogenia da homossexualidade no continente africano. Essa ideia é defendida por grupos religiosos, conservadores políticos e nacionalistas que afirmam que a homossexualidade é algo ocidental herdado do período colonial e que não fazia parte da África pré-colonial, considerada um vício estrangeiro. Esses grupos se apoiam em textos religiosos e em teorias pan-africanistas e afrocentristas para promover ataques às minorias sexuais no continente. Entre esses autores, podemos citar Molefi Kete Asante, que, no texto L’Afrocentricité (1980), nega a dignidade aos homossexuais africanos e afrodiaspóricos por meio de um discurso estereotipado muito próximo das narrativas ocidentais que ele mesmo critica. 

O segundo discurso trata da ideia de um continente excessivamente homofóbico, baseado na ideia de uma sexualidade desviante e particularmente africana, afirmada pelo que Sokari Ekine chama de imperialismo LGBTI. Esse imperialismo atua via Organizações Não Governamentais (ONGs) que têm forte influência no continente africano e que por meio de ajudas humanitárias tentam estabelecer pautas baseadas nos países do norte global ao contexto africano, não levando em conta a autonomia e as especificidades de cada país do continente. Embora a intenção dessas medidas seja de proteger as minorias sexuais africanas, algumas delas são intervencionistas e acabam por agravar conflitos internos, como aconteceu no Malawi em 2011, quando o governo recusou a ajuda humanitária dos alemães, que ameaçaram retirar esses auxílios dos países que perseguem os homossexuais. A decisão de retirar verbas que seriam investidas no país ignora o papel dos LGBTI e do movimento de justiça social como um todo no continente, além de criar hierarquias de poder que se apresentam como riscos de represália contra os LGBTI.

As transformações condicionadas aos costumes africanos após muitos anos de colonização europeia no continente afetaram diversos setores da sociedade africana, como a política, a economia, a religião e, inclusive, a sexualidade, que se tornou tema de constantes e acirradas discussões dentro e fora do continente. 

No mapeamento anual levantado pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (ILGA), de 2019, sobre a criminalização da homossexualidade, foram apontados números alarmantes no que diz respeito à homofobia promovida pelos Estados. Dos 193 países que fazem parte da Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 70 ainda penalizavam as diferentes orientações sexuais e identidades de gênero, sendo que 33 desses países fazem parte do continente africano, 22 da Ásia, seis da Oceania e nove deles das Américas. Desses 33 países africanos, os que possuem leis mais duras, chegando à pena de morte, são os países muçulmanos, localizados principalmente ao norte do continente.

Nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), esses códigos foram implementados e mantidos, mesmo após suas independências, pelo código penal português reformulado em 1886. Em 1946, é publicado um Projeto Definitivo do Código Penal dos Indígenas da Colónia de Moçambique, que aponta “vícios contra a natureza” como crime, mas foi apenas em 1954 que a lei portuguesa foi estendida às colônias. Os países Nigéria, Uganda, Libéria, Sudão, Quênia, Malawi, Zâmbia, Gâmbia, Botsuana e Somália possuem aparatos legais que criminalizam a homossexualidade por meio de leis de sodomia ou de crimes contra a natureza que remontam o regulamento colonial britânico.

Apesar de haver uma caminhada na direção da descriminalização da homossexualidade, resultado de muita luta de associações que advogam em favor dos direitos LGBTI, a legislação usada para criminalizar as relações homoafetivas tem o papel social de coagir, ameaçar e violar indivíduos que não se enquadram na heteronormatividade imposta pelos Estados conservadores.

No caso moçambicano, o fenômeno social ocasionado pelo sistema colonial produziu o que Daniel Borrilo chama de homofobia cognitiva. Baseada na “tolerância”, ela perpetua a diferença entre homo e hetero, de forma que os homossexuais não são rejeitados. No entanto, o fato de que esses indivíduos usufruam dos mesmos direitos reconhecidos aos heterossexuais, como o casamento, a adoção ou mesmo a proteção legal, causa revolta. Essa tolerância se mostra evidente na pesquisa realizada pela Afrobarometer em 2016, mostrando o país em terceiro lugar no índice de “aceitação” à homossexualidade. Esse índice, porém, não condiz com o tratamento ao qual os dissidentes sexuais são submetidos, como abandono familiar, perda de emprego, extorsão, abuso de poder por parte de policiais e violações físicas e outros tipos de violência. 

A homofobia promovida por alguns Estados africanos é uma ação que está relacionada de forma direta com a colonização europeia e a expansão islâmica no continente, sendo uma violação dos direitos humanos e constitucionais dos dissidentes sexuais, mas não é uma exclusividade africana, já que diariamente homossexuais, transexuais e pessoas intersexuais são perseguidas, estupradas, torturadas e assassinadas sob as mais diversas justificativas no mundo inteiro. Homofobia, portanto, não é algo exclusivamente africano e tampouco a homossexualidade é exógena às tradições desse continente.

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