Ditadura investigou bailes black no Corinthians e no Madureira nos anos 70

Enviado por / FontePor Thiago Braga, do UOL

Nos anos 1970, a população negra no Rio de Janeiro e em São Paulo engajou-se na luta contra a desigualdade racial. Para criar um movimento amplo que pudesse combater não só o racismo, também ter voz ativa na luta a favor de uma sociedade mais justa e igualitária para os negros, os jovens se organizaram a partir dos bailes black.

A iniciativa teve sucesso e atraiu público. Com a adesão alta, as apresentações passaram a acontecer em lugares maiores. Em São Paulo, ficaram famosos os bailes da Chic Show, em especial no ginásio do Palmeiras, que chegou a ter James Brown, um dos maiores nomes da época, no palco alviverde. Só que a ditadura militar (1964-1985) que comandava o país se incomodou com o crescimento das apresentações. É o que mostra relatório confidencial produzido pelo Ministério da Aeronáutica e obtido pelo UOL Esporte.

No documento, datado de 20 de setembro de 1977, o assunto é: “Movimento Nacional dos Black’s – Black Rio e Black São Paulo”.

Agentes infiltrados estiveram em dois shows descritos no relatório. No dia 16 de julho de 1977 foram ao ginásio do Corinthians, onde foi realizado o 19º Festival de Música Black de São Paulo. Já em 3 de setembro do mesmo ano, os militares foram ao ginásio do Madureira, onde acontecia também um show do Movimento.

No Corinthians, aproximadamente 10 mil pessoas se reuniram para assistir Toni Tornado e Gerson King Combo, dois dos maiores nomes da música brasileira.

“Quando iniciou suas apresentações, Gerson King Combo, que se auto-intitula ‘Rei dos Black’s’, disse que ‘os brancos estavam querendo boicotar sua apresentação naquele show e que os brother’s tomassem cuidado com eles’, ‘referindo-se à dificuldade de sua banda conseguir emprestada a aparelhagem de som pertencente à CBS – que se encontrava no local, no lançamento do cantor Tony Bizarro. Entre os jovens negros, a fala do Gerson serviu para acirrar os ânimos, o que gerou um principio de tumulto e brigas, mas que devido a saída do local, dos brancos, foi incidente ultrapassado. Em São Paulo, destaca-se como um dos líderes do Movimento Black, um jovem negro conhecido por Tadeu, proprietário de uma equipe de som ‘soul’, e que fez as apresentações no aludido festival”, descreve o agente.

O informe sigiloso mostra que os bailes eram considerados como ambientes subversivos pelos órgãos de repressão das Forças Armadas. Isso porque nestas festas a negritude era exaltada, o que, para os militares, poderia gerar conflito com os brancos.

Documento mostra que ditadura monitorava bailes black no Rio e em São Paulo (Foto: Imagem retirada do site UOL)

“A importância de analisar essa perseguição aos bailes é entender que o regime ditatorial instalado com o golpe de 64 não foi um regime que voltou seu aparato, seus órgãos de controle de informação, espionagem, censura, apenas para militantes da luta armada ou do movimento estudantil. Muito pelo contrário. Era um regime que observava, acompanhava, monitorava o conjunto da sociedade e que tentava sufocar qualquer iniciativa que divergia minimamente do que fazia parte da base ideológica do regime”, analisa o historiador Lucas Pedretti, autor da dissertação de mestrado “Bailes soul, ditadura e violência nos subúrbios cariocas na década de 1970”.

O relatório das Forças Armadas sobre os bailes no Rio e em São Paulo mostra que o agente que elaborou o documento não se preocupou em deixar o racismo de lado. Sobre a apresentação no ginásio do Madureira, em setembro de 77, ele escreveu que “aproximadamente 15 mil jovens lotavam completamente o ginásio, em sua quase totalidade negros, vestidos à moda black, cabelos cheios, calças ‘boquinhas’, camisas extravagantes, sapatos de solas/saltos altos e em cores berrantes, turbantes indianos e, cumprimentando-se com os punhos cerrados, fazendo a saudação idêntica à do negro norte-americano”, relata, descrevendo com preconceito o visual entre adotado pela juventude negra na época.

O produtor musical Luiz Alberto dos Santos, mais conhecido como Luizão, foi um dos mais importantes na ampliação dos bailes em São Paulo. Ele é o criador da Chic Show, equipe de som que popularizou as festas na capital, e que teve papel fundamental para que a juventude pudesse exaltar suas raízes.

“A chegada da Chic Show foi como uma invasão negra no território branco. Era época da ditadura, o bicho estava pegando. Nos bailes havia um oficial de justiça para checar a idade das pessoas. Como a Chic Show era o baile dos negros, levamos os negros para os clubes de elite da cidade, como Palmeiras, Círculo Militar, Clube Homs, Casa de Portugal, e se alastrou”, recordou Luizão.

Por enxergar qualquer crítica ao governo como obra de um inimigo que deveria ser eliminado, os militares voltaram a atenção aos shows, que ajudavam na aglutinação do movimento negro.

“A ditadura tinha interesse em investigar esses bailes porque, para o regime, o mito da democracia racial era um pilar ideológico muito importante. É a ideia articulada através de um pensamento conservador do Brasil, de que a relação entre brancos, negros e índios teria sido hamoniosa e não traumática, conflituosa”, explica o historiador Lucas Pedretti.

Embora fossem apenas um refúgio para a população negra se expressar e se conectar com suas raízes culturais, os bailes dos anos 70 foram reprimidos pelas Forças Armadas porque, para a ditadura, eles eram a extensão, no Brasil, do movimento iniciado nos Estados Unidos pelos Panteras Negras, grupo organizado descrito como extremista pelo FBI americano.

Uma das consequências do movimento da população negra, catapultado pelos bailes de música soul aconteceu em 7 de julho de 1978. Naquele dia, centenas de homens e mulheres partiram em direção às escadarias do Theatro Municipal, no centro de São Paulo, no que ficou conhecido como Público Contra o Racismo, e deu origem ao Movimento Negro Unificado (MNU), criado para denunciar o racismo e protestar contra atos violentos e explícitos de discriminação racial no país, em especial praticados pelas forças de segurança.

Para o historiador Lucas Pedretti, a repressão aos bailes dos anos 70 não aconteceu só por medo de uma ameaça comunista, mas também como parte de uma política que persegue todo tipo de movimento formado pela população negra brasileira.

“Houve perseguição à capoeira, ao samba, aos bailes, e ao funk dos anos atuais. O que essas manifestações têm em comum? São ritmos negros, da diáspora africana. Formas de expressão cultural que celebram a identidade negra e que, portanto, a gente entende que o regime foi mais um episódio de violência de estado contra os negros. Para certos setores da sociedade, a depender da sua cor da pele, da sua moradia, a violência do Estado é a regra, não a exceção”, analisa.

“Dentro de sua programação, as equipes de som inseriram uma projeção audiovisual, que fica colocada em duas grandes telas ao lado das caixas acústicas, projetando, enquanto as músicas são tocadas, flashes da guerra do Vietnã, da seca do nordeste brasileiro, das favelas, da prostituição, e outros quadros semelhantes, com o intuito de ‘motivar’ os jovens”, destaca o relatório produzido pelas Forças Armadas.

Entre os artistas que se apresentavam e que fortaleceram o crescimento do movimento negro na década de 70 estão, além de Tony Tornado e Gerson King Combo, Carlos Dafé, Banda Black Rio e Jorge Ben Jor. Mas a música que contagiava o público não importava para os militares.

“Olhando para os bailes, a gente percebe que as consequências do regime foram muito mais amplas do que a gente pensa. É fundamental analisar essa perseguição aos bailes para que a gente possa debater com o mito de que essa ditadura não foi tão violenta assim, ou então de que só foi torturado e preso quem estava pegando em armas. Vai ver que aquilo era visto como subversão, um inimigo, e que ali deveria haver repressão por parte do Estado, porque poderia se tornar um espaço de contestação ao regime”, finaliza Pedretti.

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