Djamila Ribeiro: ‘A gente luta por uma sociedade em que as mulheres possam ser consideradas pessoas’

Escritora participa da mesa ‘Feminismos plurais’ na Flup

por Thayná Rodrigues no O Globo

Djamila Ribeiro é autora do best-seller ‘Quem tem medo do feminismo negro’ Foto- Marcos Alves : Agência O Globo

No mês da Consciência Negra, a Festa Literária das Periferias (Flup) homenageia Maria Firmina dos Reis, que publicou seu primeiro livro, “Úrsula”, em 1859. Pioneira no romance antiescravagista no Brasil, a mulher que cresceu órfã e se apaixonou pelas Letras na adolescência tornou-se autodidata e passou em primeiro lugar num concurso para ser professora primária. Nordestina do Maranhão, a educadora fundou no estado a primeira escola pública para meninos e meninas do país, no século 19. Mas Maria não foi reconhecida em vida.

Pela memória passada de Maria Firmina, Djamila Ribeiro — autora do best seller brasileiro “Quem tem medo do feminismo negro” (Companhia das Letras, 2018) — recupera a inspiração na autora e afirma que a invisibilidade da escrita negra ainda se faz presente. A escritora é uma das participantes da mesa “Feminismos Plurais”, que também receberá Carla Akotirene, Joice Berth, Juliana Borges e Silvio Almeida.

De que forma Maria Firmina te inspira?

Maria Firmina é uma figura central para o Brasil. É a primeira pessoa, como diz a História, a escrever um romance no Brasil. Foi alguém que durante muito tempo ficou invisibilizada por se tratar de uma mulher negra. Resgatar essa obra dela agora, ela ser republicada, é importantíssimo para as próximas gerações (o livro “Úrsula” teve, este ano, sua sétima edição), sobretudo para as mulheres negras que vêm escrevendo, que vêm produzindo. Ainda numa área em que o sistema literário nos invisibiliza. Então, acho que a Maria Firmina acaba sendo uma referência para todas as mulheres que escrevem, que produzem, ainda ter que lutar por um reconhecimento, às vezes tardio.

Há outras escritoras negras que tiveram reconhecimento tardio, certo?

A própria Conceição Evaristo (mineira de 71 anos que disputou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras este ano), que é uma escritora brilhante, importante, não dá para negar que teve um reconhecimento tardio. Ela tem uma frase que acho muito interessante, que é: “O problema não é escrever. O problema é publicar”. Eu conto que a gente ainda passa por estas questões mas, ao mesmo tempo, ter referências como estas nos inspira. Foram mulheres que abriram portas e mostraram que era possível.

Seu pai tem uma participação forte na sua formação, certo?

Meu primeiro contato com a militância foi na infância porque meu pai era ativista, do movimento negro, militante. Ele foi um dos fundadores do Movimento Comunista em Santos, então eu e meus irmãos — tenho dois irmãos e uma irmã — passamos boa parte da nossa infância indo a atos, participando de reuniões dentro do partido. Ele conversava muito com a gente sobre a questão racial dentro de casa. Então, isso era um tema, desde selecionar o que a gente ia assistir até como ia incentivar a ler. A própria escolha do meu nome ele tirou de um jornal chamado “Jornegro”, que era um jornal da militância negra na década de 70. Ele sempre teve muito presente na minha vida desde muito cedo. Conforme eu fui crescendo, fui encontrando meus próprios caminhos, acabei encontrando a Casa de Cultura da Mulher Negra em Santos (SP). Foi ali que me entendi feminista. Acabei encontrando meu próprio caminho, mas sem dúvida tive esta influência desde cedo dentro de casa.

Você se lembra qual foi seu primeiro livro de uma autora negra?

Eu já tinha lido escritores homens (na adolescência): Machado de Assis… Quando eu fui trabalhar na Casa de Cultura da Mulher Negra, no fim da adolescência, conheci a biblioteca da organização. Ela se chamava Carolina Maria de Jesus. Ali eu tive contato com a obra dela, que eu conheci autoras como Toni Morrison, que é uma das minhas favoritas. Fui conhecer o trabalho da Sueli Carneiro, da Jurema Werneck… Foi bem no fim da adolescência por conta da Casa de Cultura.

Temos visto um distanciamento de algumas mulheres do feminismo, numa crença na deslegitimação do movimento. Por que isso acontece?

Tentaram criar, de várias formas, maneiras de desqualificar o feminismo. É importante pensar que os movimentos feministas são diversos. Existem várias correntes de pensamento, várias vertentes, não necessariamente eles concordam entre si sobre os assuntos, mas algo que a gente concorda é que a gente acredita na equidade. A gente acredita que mulheres não devem ganhar menos por serem mulheres, que elas não devem ter uma vida marcada pela violência. A gente vive num país em que a cada cinco minutos uma mulher é agredida; a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada. Por mais que a gente acha que o feminicídio não existe, os dados estão aí para provar que ele existe.

Qual é o princípio fundamental do feminismo?

A gente luta por uma sociedade em que as mulheres possam ser consideradas pessoas, que elas não sejam violentadas pelo fato de serem mulheres. Quando as pessoas entendem que a gente está lutando por justiça social, por equiparação e por equidade, não tem motivo para não ser feminista. Se você é uma pessoa inconformada com as injustiças e com as desigualdades, você é uma pessoa feminista e talvez não saiba que seja. Não tem nenhum bicho de sete cabeças. O que a gente quer, na verdade, é uma sociedade livre de desigualdades e violência.

Foi essa tentativa de desmitificar o feminismo que a levou ao título “Quem tem medo do feminismo negro”?

Também. Era uma maneira de ser didática, de ser acessível, para as pessoas entenderem que quando a gente está falando de feminismo negro, a gente está marcando que são mulheres negras pensando o mundo e uma sociedade sem opressão, um lugar em que a gente possa lutar contra o racismo, o machismo, a questão de classe. Quando a gente fala de mulheres, tem que entender que há diversas mulheres e, a depender das opressões que elas sofrem, elas acabam ficando num lugar mais vulnerável. A realidade de uma mulher que mora no Complexo do Alemão (comunidade da Zona Norte do Rio de Janeiro) não é a mesma de uma que mora na Barra da Tijuca (bairro da Zona Oeste da cidade). Mostrar essa diferença e mostrar o que a gente quer é uma sociedade livre de opressão.

Qual é o valor de estar num evento que traz à tona a importância da literatura da periferia?

É importante a gente desmistificar quem é este sujeito que escreve. Geralmente, o que é mostrado para nós é escrito por homens brancos, ricos ou europeus, como se nós não produzíssemos saber também, como se não tivéssemos escrevendo a História. Poder mostrar isso para as pessoas é fundamental. Escritores de diferentes lugares, as pessoas que vêm da periferia também são sujeitos pensantes, que produzem, sujeitos que escrevem. Isso gera uma identificação em pessoas que nunca foram vistas como produtoras. Há uma identificação com o que está sendo escrito e com o que se escreve. O leitor consegue se ver nestas pessoas.

Você acompanha o trabalho de algum destes escritores da periferia?

Tem muitos saraus importantes, como a Cooperifa , em São Paulo; no Rio de Janeiro tem muitos coletivos e escritores também: o Giovani Martins é um grande expoente também e foi descoberto pela Flup, tem a Sil Bahia… Vai ser injusto eu não citar todos (risos). Mas os jovens estão protagonizando estes lugares. Capacidade dos povos negros e da periferia sabemos que tem. O que a gente precisa é de movimentos que possibilitem estas oportunidades.

Vive-se um momento de muita distração, sobretudo por conta da tecnologia. Há quem acredite que os livros estã sendo deixados de lado. Como acreditar que a educação e a literatura vão resistir?

O primeiro passo é entender que sem a gente questionar, sem a gente refletir, a gente não sai do lugar e não consegue entender nem a própria realidade que nos cerca. Para resistir, é importante consumir e apoiar as obras destas pessoas, entender que é preciso que o escritor tenha os direitos autorais também. Por isso é tão importante comprar o livro, organizar espaços para que os autores possam divulgar seu trabalho. É sempre um trabalho coletivo. Entender o valor das individualidades como fundamental para que a gente consiga refletir nossa própria realidade. Apoiar a Flup, participar de eventos… Não é fácil escrever um livro, não é fácil publicar um livro, o Brasil não é um país de leitores. A gente ainda precisa avançar muito mais neste sentido. Mas por um lado, temos este momento de crise mas, por outro, tem acontecido coisas interessantes: a Conceição Evaristo vendendo bem, Giovani Martins vendendo bem, eu vendendo bem… Isso mostra que este sistema editorial precisa se reinventar. Talvez as pessoas não estejam se identificando com o jeito antigo de fazer. Temos feito lançamentos em lugares abertos. Não temos feito lançamento em livraria. Levamos DJ, tornamos este um momento de celebração. Na contramão do sistema editorial, temos levado mais de duas mil pessoas num lançamento de livro. Isso é significativo no Brasil.

Sua presença em diversas plataformas e o seu didatismo sobre conceitos como feminismo e racismo às vezes despertam críticas…

É fundamental trazer diversas vozes para a discussão, e não falar só para a gente. Há uma consciência de como a gente ocupa estes espaços. Estar na televisão (a escritora participou da bancada do programa “Amor & sexo”, da TV Globo, e apresentou “Entrevista”, sobre direitos humanos, no Canal Futura) , muitas pessoas já estiveram. E se entende que nem todo mundo tem acesso à internet. Num país em que 100 milhões de pessoas da população brasileira não têm. Quando vamos à TV, atingimos um público C e D, pessoas que não atingiríamos. Estas pessoas depois podem comprar o livro e multiplicar nos seus espaços. É importante estamos em todos os lugares. Estamos contra a maré, no lado da resistência. Precisamos encontrar estratégias e conversar com um número maior de pessoas. Estes são espaços estratégicos de comunicar. Não me interessa guardar para mim a reflexão se acredito na potência da transformação das mentalidades. Independentemente das críticas a isso, há uma crítica também a quem fala muito para si mesmo, para um grupo pequeno, e não consegue cumprir o objetivo, de fato. A ideia não é criar nichos de poder ou manter a fala para uma meia dúzia que tem acesso àquilo. Nosso objetivo é com a transformação e ela se dá de vários meios e formas possíveis.

Aceitaria um convite para um programa de TV?

Não é uma meta para mim mas, se vier, é uma coisa a se pensar. No momento, não conseguiria focar. “O que é lugar de fala?” (Letramento, 2017) está concorrêndo ao Prêmio Jabuti na categoria Humanidades. Então, neste momento, agora eu preciso me dedicar a estes projetos e aos selos “Feminismos plurais” e “Sueli Carneiro”. Fazer TV pontualmente me interessa mais do que fazer algo mais frequente.

Como está a divulgação de “Quem tem medo do feminismo negro” fora do Brasil?

Participei de feiras fora do Brasil, de debates na Alemanha e na Espanha, por exemplo. Há um alcance internacional interessante.

Há previsão de lançamento de outros livros em 2019?

Por enquanto, não estou planejando. Como coordeno a coleção “Feminismos plurais”, o objetivo é continuar lançando os autores deste projeto coletivo. Já estamos no sexto livro. Lançamos o selo Sueli Carneiro, que é outro produto, com ideia de publicar obras de mulheres negras e mais velhas. Lançamos “Sueli Carneiro: escritos de uma vida”, com prefácio da Conceição Evaristo. É um livro que reúne artigos que ela publicou ao longo da vida. Agora, estou na base destes outros autores.

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